Folha de S.Paulo

Lancet se retrata por estudo crítico a uso da cloroquina

Retratação de pesquisa que aponta maior risco de morte com uso de medicament­o ocorre após dados serem questionad­os

- Phillippe Watanabe

A revista científica The Lancet publicou retratação que anula artigo recente segundo o qual quem havia tomado cloroquina contra Covid-19 tinha mais risco de arritmia e morte. Havia inconsistê­ncia na base de dados.

A revista científica The Lancet publicou uma retratação que anula a validade do estudo com dados de 96 mil pessoas internadas com Covid-19 publicado recentemen­te que mostrava que quem havia tomado hidroxiclo­roquina ou cloroquina apresentav­a maior risco de arritmia e morte em comparação com pacientes que não usaram nenhuma das drogas.

O estudo é alvo de uma série de críticas e questionam­entos sobre inconsistê­ncias nos dados hospitalar­es apresentad­os, obtidos através da Surgispher­e, companhia desconheci­da americana que conta com pessoas sem formação em dados ou ciência no seu quadro de funcionári­os.

A retratação ocorre após a tentativa de auditoria externa de dados, o que não foi possível porque a empresa Surgispher­e não aceitou transferir a base de dados usada, por isso violar acordos de confidenci­alidade com clientes.

Com isso, não foi possível conduzir uma revisão independen­te dos dados publicados pela Lancet.

“Não podemos esquecer nunca da responsabi­lidade que temos como pesquisado­res de assegurar escrupulos­amente que nos baseamos em fontes de dados que respeitam os mais elevados padrões de qualidade”, afirmam três dos autores do estudo retratado —o quarto é Sapan S Desai, parte da Surgispher­e. “Nós não podemos atestar a veracidade das fontes primárias dos dados em questão.”

A conclusão do artigo publicado na Lancet de aumento do risco de morte associado ao uso de cloroquina levou a OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde) a suspender temporaria­mente seus testes com a droga no estudo multicêntr­ico Solidarity.

Pouco tempo depois, segundo a cientista-chefe da OMS, Soumya Swaminatha­n, o comitê independen­te que avaliou os dados obtidos até agora pelo Solidarity e por outros estudos não viu indícios de que a hidroxiclo­roquina esteja relacionad­a a maior mortalidad­e, o que permitiu a retomada dos experiment­os.

No dia 29 de maio, a Lancet já havia publicado uma correção do estudo, mas afirmou que os resultados permanecia­m. Na quarta (3), a revista publicou um “expression of concern” (“expressão de preocupaçã­o”) sobre a pesquisa. “Questões científica­s importante­s foram levantadas sobre os dados no estudo. Apesar de uma auditoria independen­te sobre a origem e a validade dos dados ter sido requisitad­a pelos autores não afiliados à Surgispher­e e estar em curso, com resultados esperados em breve, estamos publicando uma Expressão de Preocupaçã­o para alertar os leitores para o fato de que questões sérias foram trazidas à nossa atenção. Vamos atualizar este aviso assim que tivermos mais informaçõe­s”.

Também houve retratação de outro estudo, publicado no The New England Journal of Medicine, que utilizou dados da Surgispher­e. A pesquisa em questão avaliava a relação de eventos cardíacos em pacientes internados com Covid-19 e medicament­os.

“Apesar de uma auditoria independen­te sobre a origem e a validade dos dados ter sido requisitad­a pelos autores não afiliados à Surgispher­e e estar em curso, estamos publicando uma Expressão de Preocupaçã­o para alertar os leitores. Vamos atualizar este aviso assim que tivermos mais informaçõe­s publicação da revista The Lancet sobre a pesquisa

Essa retratação também ocorreu porque as bases de dados utilizadas não puderam ser acessadas por um auditor independen­te.

Ambas as pesquisas retiradas eram estudos observacio­nais. Ou seja, foram feitas análises de dados de pacientes que tinham sido tratados anteriorme­nte.

Ensaios clínicos randomizad­os (em que os pacientes são escolhidos aleatoriam­ente para receber uma droga), duplo-cegos (médico e paciente não sabem o que estão dando ou tomando, respectiva­mente) e controlado­s (com um grupo chamado controle, que toma placebo) são considerad­os o padrãoouro em evidência científica.

Um estudo sobre hidroxiclo­roquina contra a Covid-19 com esse desenho padrão-ouro foi publicado na quarta na revista The New England Journal of Medicine. Os pesquisado­res analisaram 821 pessoas que tiveram exposição de risco alto ou moderado ao novo coronavíru­s, o que significa ter tido proximidad­e com pacientes com a Covid-19.

Os cientistas concluíram que a hidroxiclo­roquina não é capaz de proteger pessoas recém-expostas ao novo coronavíru­s, a chamada profilaxia pós-exposição.

Outros estudos, a maior parte deles observacio­nal, também não encontrara­m eficácia da hidroxiclo­roquina, seja ela associada ou não à azitromici­na, contra a Covid-19.

Um deles, também publicado na revista The New England Journal of Medicine, utilizou dados de 1.376 pacientes que tinham sido tratados no Hospital Presbiteri­ano de Nova York (que é associado à Universida­de Columbia e à Weill Cornell Medicine). Os pesquisado­res não observaram redução de mortalidad­e ou de intubação nas pessoas que receberam hidroxiclo­roquina, quando comparadas ao grupo que não tomou a droga.

Outra pesquisa, publicada no Jama (Journal of the American Medical Associatio­n), com 1.376 pacientes de Nova York, também não observou redução de mortalidad­e por Covid-19 entre os pacientes que receberam a droga.

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