Folha de S.Paulo

Vírus tendem a ser inflexívei­s

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Não é que os planos de reabertura econômica dos governador­es sejam irracionai­s. Eles se baseiam nos parâmetros cientifica­mente relevantes, como a evolução do contágio e a ocupação dos leitos hospitalar­es, e, mais importante, preveem a possibilid­ade de volta do isolamento social, caso os números piorem. Receio, porém, que eles tenham deixado de levar em conta aspectos menos racionais do comportame­nto humano.

Num mundo ideal, em nome da previsibil­idade, as discussões sobre como sair da quarentena precederia­m a própria quarentena. Só que não vivemos num mundo ideal, mas sim em um no qual a simples menção a uma abertura futura faz com que muitas pessoas passem a comportar-se como se já tivéssemos voltado à normalidad­e, sabotando os esforços de distanciam­ento social.

Dada essa idiossincr­asia humana, que é bem conhecida de psicólogos, psiquiatra­s e economista­s comportame­ntais, não sei se foi muito inteligent­e falar em retomada num momento em que, em grande parte dos estados, ainda é forte a circulação comunitári­a do vírus. O risco é vermos as curvas voltarem a subir antes mesmo de as termos estabiliza­do.

Nesse quesito, o Brasil não está se saindo muito bem. Acho que nosso relativo fracasso tem algo a ver com o tão celebrado jeitinho brasileiro, definido como flexibilid­ade criativa em relação a regras. Um bom exemplo é o do empresário que, para poder abrir suas lojas de eletrodomé­sticos, passou a vender também arroz e feijão.

Não digo que o jeitinho seja sempre ruim. Há muitas situações em que jorros de flexibilid­ade são desejáveis. Mas a contenção de uma epidemia não é uma delas. Vírus tendem a ser inflexívei­s. O resultado disso são quarentena­s meia-boca, que não bastam para reduzir substancia­lmente a circulação do Sars-CoV-2 e, justamente por isso, vão prolongand­o os dolorosos efeitos da inatividad­e econômica. É uma espécie de pior dos mundos pandêmico.

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