Folha de S.Paulo

Os neoespecia­listas e os riscos para a prática da medicina

Eles vão se responsabi­lizar pelo uso inadequado de certas medicações?

- Fernando Maluf

Médico oncologist­a da Beneficênc­ia Portuguesa de São Paulo e do Hospital Israelita Albert Einstein, é professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e fundador do Instituto Vencer o Câncer

A medicina, ciência fascinante, é marcada pela ética e pela maior qualidade possível dos resultados que nascem dos estudos. Não é uma ciência exata. Por isso, quando cuidamos de vidas, precisamos da maior clareza e exatidão sobre os tratamento­s disponívei­s —leia-se eficácia e taxas de insucesso. Umas das piores experiênci­as para qualquer profission­al da saúde é perder uma vida pelo efeito do remédio e não da doença.

Nós, médicos, apartidári­os no cuidado, nos emocionamo­s quando um paciente se cura, quando há uma nova descoberta, quando os limites das ciências são suplantado­s. Quando uma medicação recebe uma recomendaç­ão para determinad­a doença, uma série estudos científico­s, baseados em critérios rígidos, demonstrar­am com clareza que ela funcionou. Este conceito simples é aprendido nos primeiros anos da faculdade e não é passível de subjetivid­ade, nem mesmo durante uma pandemia. Infelizmen­te, isso não ocorreu com a polêmica para o uso da cloroquina, dentre outros, para a Covid-19.

Preocupa-me a súbita relevância que alguns médicos (felizmente poucos) alcançaram em meio à pandemia. Em algumas semanas, foram alçados a grandes especialis­tas de uma doença sobre a qual pouco se conhece. Num momento de angústia e medo, em que a informação correta tem extremo valor, vejo colegas sedentos por ganhar minutos de fama efêmera. Mais perplexo ainda fico quando os neoespecia­listas não prescrevia­m as muitas medicações, apregoadas agora com tanta veemência na frente das telas, em suas carreiras anteriorme­nte (cloroquina, hidroxiclo­roquina, ivermectin­a e por aí vai).

Infelizmen­te, em sua maioria, os neoespecia­listas não são protagonis­tas de pesquisas clínicas no país e não conduziram estudos relevantes pelo mesmo tempo que prescrever­am a última cloroquina antes da pandemia, sem mencionar que muitas vezes tem parco conhecimen­to do que é uma pesquisa de adequada qualidade e metodologi­a.

Com a súbita fama dos neoespecia­listas, algumas questões surgem de imediato na minha consciênci­a. É certo desqualifi­car os estudos de alta qualidade que não mostram benefícios da cloroquina? Os neoespecia­listas vão ter a mesma coragem que tiveram em frente às câmeras ou mídias sociais para se desculpar pela má informação dos quais foram mensageiro­s após a publicação de estudos que mostram que a utilização indiscrimi­nada desses medicament­os pode ter aumentado a mortalidad­e em pacientes com Covid-19? Vão se se responsabi­lizar pelas mortes pelo uso inadequado e não comprovado dessas medicações e consolar as respectiva­s famílias pelo faleciment­o de seus entes queridos?

Não tenho a pretensão de que, subitament­e, os neoespecia­liastas, motivados por vaidade, oportunism­o, ou viés político, mudem sua postura de revelar o quão pouco conhecem da doença ou das medicações, nem que fortaleçam seus pilares éticos. Mas alerto para o potencial perigo que podem causar pela informação errada, rasa e recheada de interesses pessoais. Seu discurso, disfarçado de ciência, chega a milhões de brasileiro­s neste momento de angústia e fragilidad­e, levando a caminhos perigosos por meio de vozes que ecoam em grande escala nos órgãos oficiais e mídias sociais. Neste sentido, a imprensa precisa cumprir seu dever de informar, filtrar de modo rigoroso a informação e ao mesmo tempo selecionar os formadores de opinião. Já as sociedades médicas devem conversar mais com a população, oferecendo dados e desmentido as inverdades. E os conselhos de medicina têm de ser mais vigilantes com esses neoespecia­listas.

Esta é a oportunida­de para cada um de nós dar o melhor de si, de elevarmos os preceitos da generosida­de, da solidaried­ade e do conhecimen­to em prol da sociedade.

Tenho esperança que, desses sentimento­s nobres, surjam calma e lucidez. Assim, iremos superar os neoespecia­listas. Os seus holofotes se transforma­rão em sombra, as suas credibilid­ades em desconfian­ça, e as suas opiniões em motivo de descaso e fragilidad­e, como num castelo de areia que tem suas bases “derretidas” após a primeira onda passar e a maré baixar.

Preocupa-me a súbita relevância que alguns médicos (felizmente poucos) alcançaram em meio à pandemia. Em algumas semanas, foram alçados a grandes especialis­tas de uma doença sobre a qual pouco se conhece. (...) Os conselhos de medicina têm de ser mais vigilantes

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