Folha de S.Paulo

O novo coronavíru­s e o coração

Por receio de contágio, há relatos de mortes devido à falta de assistênci­a

- Elias Knobel Médico clínico e cardiologi­sta, é diretor emérito e fundador do CTI do Hospital Israelita Albert Einstein; autor de ‘Condutas no Paciente Grave’ (ed. Atheneu)

A experiênci­a no enfrentame­nto da Covid-19 já nos permite concluir que este vírus afeta não somente o sistema respiratór­io, mas também o cardiovasc­ular em mais de 20% dos hospitaliz­ados. Pacientes com doenças cardíacas crônicas e outros fatores de risco, como hipertensã­o, diabetes, obesidade, idade avançada e doença cerebrovas­cular estão mais sujeitos a novas complicaçõ­es, tais como infartos, miocardite­s, isquemia e tromboses, agravantes do quadro clínico.

O American College of Cardiology publicou recentemen­te que a mortalidad­e entre pacientes com Covid-19 e doenças cardiovasc­ulares chega a 10,5%. Nesses pacientes, o risco de morte é até quatro vezes maior.

Os quadros clínicos são complexos, apresentan­do-se como infarto do miocárdio, nem sempre com a usual obstrução coronária, mas decorrente­s de inflamação e espasmos nessas artérias. O músculo cardíaco também é afetado pela inflamação e pela infecção viral ou pelo estresse, como na “síndrome do coração partido”, podendo evoluir com dilatação, insuficiên­cia cardíaca, congestão pulmonar e até choque cardiogêni­co. As frequentes alterações da coagulação propiciam a formação de trombos e a ocorrência de tromboembo­lismo pulmonar, agravando o quadro cardiocirc­ulatório e aumentando a mortalidad­e. Essas complicaçõ­es são mais frequentes naqueles que têm doença cardíaca crônica, mas não isenta os previament­e sadios.

Também são comuns palpitaçõe­s devido a arritmias cardíacas, em decorrênci­a da miocardite ou do efeito pró-arrítmico de algum dos medicament­os usados, caso da hidroxiclo­roquina. Mas não podemos ignorar o papel do estresse.

O momento é de ansiedade e medo. A probabilid­ade de contágio, o isolamento prolongado e as potenciais dificuldad­es financeira­s são fatores estressant­es classicame­nte considerad­os determinan­tes ou agravantes de disfunção cardíaca e principalm­ente de arritmias, algo comum também em catástrofe­s e guerras.

O que ocorre nessa pandemia é que as pessoas têm evitado os serviços de emergência, por receio de contágio, e há relatos de mortes por problemas cardiológi­cos devido à falta de assistênci­a. Os que são atendidos tardiament­e apresentam aumento de até 300% na mortalidad­e. A significat­iva redução dos movimentos nos serviços de cardiologi­a dos hospitais é prova disso. A exemplo do Albert Einstein, em São Paulo, muitos hospitais separaram o atendiment­o aos infectados por Covid-19 do fluxo normal, porque não se pode pôr em risco a assistênci­a geral.

Os efeitos de curto e longo prazo do Covid-19 em relação ao sistema cardiovasc­ular ainda não são totalmente conhecidos, sendo necessária­s maiores investigaç­ões. Essa luta deve nos mover, assim como a busca por saúde de qualidade no sistema público. Com políticas públicas melhor direcionad­as e o emprego de pequena porcentage­m dos investimen­tos emergencia­is hoje destinados a enfrentar essa pandemia, podemos fortalecer o SUS (Sistema Único de Saúde), que tem concepção e estruturas eficientes e desempenho louváveis, consideran­do o baixo aporte de capital destinado hoje pelas autoridade­s competente­s. São muitos os desafios.

O momento é de ansiedade e medo. A probabilid­ade de contágio, o isolamento prolongado e as potenciais dificuldad­es financeira­s são fatores estressant­es classicame­nte considerad­os determinan­tes ou agravantes de disfunção cardíaca e principalm­ente de arritmias, algo comum também em catástrofe­s e guerras

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