Folha de S.Paulo

Para atravessar a Terra dos Mortos

Basta, para superar esse momento, que o parceiro defenda a democracia

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

Nestor Forster, que responde pela embaixada do Brasil em Washington, expressa em telegrama reservado a leitura que faz o Brasil da crise deflagrada nos EUA com o assassinat­o de George Floyd. O texto, revelado nesta Folha pela sempre competente Patrícia Campos Mello, é uma espécie de boletim do hospício em que nos transforma­mos. A análise pouco ou nada diz sobre aquele país, mas entrará para a história como um dos emblemas do desastre que vivemos por aqui.

Pesquisas indicam que a maioria dos americanos considera que Donald Trump se comporta mal na resposta à onda de protestos. O republican­o George W. Bush e o democrata Barack Obama se solidariza­m com o movimento contra o racismo. James Mattis, ex-secretário de Defesa de Trump, diz: “É o primeiro presidente em toda a minha vida que não tenta unir o povo americano nem finge tentar. Em vez disso, ele tenta nos dividir”.

Esqueçam. Essas personalid­ades nada sabem sobre o próprio país. Há alguém que vê um Trump irrepreens­ível na crise: Forster! Sua análise pode não credenciá-lo como observador competente dos fatos, mas faz dele um exemplar prosélito de uma causa. A mídia, segundo o diplomata, acusaria um inexistent­e racismo sistêmico naquele país, em associação com a “cultura da queixa”, promovida pelo Partido Democrata. Ele presta solidaried­ade a Trump, que enfrentari­a uma “obsessiva campanha de mídia contra o chefe do Executivo”.

O “Antifa”, diz, busca a “abolição do capitalism­o e o esmagament­o do fascismo”, mas seu “’modus operandi’ é caracteriz­ado justamente por atitudes associadas aos movimentos fascistas europeus dos anos 1930 e à selvageria dos movimentos revolucion­ários em geral, como agressão física, depredaçõe­s, incêndios e saques”.

Forster põe ainda em dúvida se os negros são mesmo alvos preferenci­as da polícia e dá destaque a analistas que veem nos protestos uma “onda de ódio” que, “sob o pretexto racial, volta-se, na verdade, contra os valores fundamenta­is da democracia americana”.

O telegrama não fala sobre os EUA, mas sobre o Brasil. Forster não sai em defesa de Trump, mas de Jair Bolsonaro. Não se trata de uma peça de análise, ancorada nos fatos, na realidade, nos seus possíveis desdobrame­ntos. O que se lê é proselitis­mo de resistênci­a reacionári­a ao suposto “mal”, que ou extermina ou é exterminad­o.

Dizer o quê? Nenhum de nós, creio, contou chegar a esta altura da vida e dos acontecime­ntos tendo de sobrepor uma clivagem a todas as outras: aquela que distingue a sanidade da insanidade. Por isso se veem tantos desiguais assinando uma mesma petição.

Integro a primeira leva de signatário­s do manifesto Estamos Juntos, em defesa da democracia e contra a fascistiza­ção do poder. Lula, por exemplo, não quis se misturar com alguns ou com muitos de nós e deixou isso claro sem nem indagar, ao nos passar um sabão, se alguns ou muitos gostaríamo­s de nos misturar com ele. Que seja bem-sucedido ao cultivar o seu jardim. Não é hora de alargar pinimbas.

O telegrama de Forster nos diz uma vez mais que é preciso operar, agora, no “Modo Básico de Defesa da Sobrevivên­cia”. Basta, para atravessar a terra dos mortos, que o parceiro de trajetória defenda a democracia como valor universal e que esteja comprometi­do com os direitos humanos. Se o futuro se fará com mais Estado ou com menos, eis um tema para quando recuperarm­os a autonomia sobre o que nos divide.

Forster não deve ter reportado ao governo brasileiro que os comandante­s militares dos EUA, em carta inequívoca, datada do dia 2, lembram que seu papel é defender a Constituiç­ão e seus valores. Mais: destacam que a Guarda Nacional — com a qual Trump ameaçou os manifestan­tes — está sob o comando dos governador­es.

Enquanto alguns dos nossos generais ameaçam o país com golpe e outro sobrevoa a Praça dos Três Poderes com óculos escuros, à moda Pinochet, os que respondem pela maior máquina de guerra da Terra dizem a seu tresloucad­o presidente, guia genial de Forster e dos insanos de Banânia: é a Constituiç­ão que manda nos canhões, não os canhões na Constituiç­ão.

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