Folha de S.Paulo

Fake news são corrupção eleitoral do século 21, diz pai da Lei da Ficha Limpa

Márlon Reis sugere mudança na legislação contra notícias falsas e disparos ilegais de mensagens

- MÁRLON REIS José Marques

“É preciso atualizar e legislar de acordo com as caracterís­ticas da atualidade

Idealizado­r da Lei da Ficha Limpa, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo ex-presidente Lula (PT) há dez anos, o ex-juiz Márlon Reis, 50, afirma ver as fake news e os disparos ilegais de mensagens como os grandes problemas a serem combatidos nas eleições atualmente.

Depois da lei que barrou candidatur­as de políticos cassados ou condenados em segunda instância (como o próprio Lula em 2018), o ex-magistrado sugere que o projeto sobre fake news que tramita no Senado “deixe claro que constitui abuso de poder econômico e dos meios de comunicaçã­o” o disparo em massa de fake news.

Em entrevista à Folha, ele afirma que isso facilitari­a “processos de cassação, com a vantagem de que essas ações, realizadas com esse fundamento, ainda geram inelegibil­idade”. “Uma ficha limpa digital”, diz o advogado.

Márlon, que largou a magistratu­ra em 2016, concorreu pela Rede nas eleições ao Governo do Tocantins duas vezes em 2018 —uma delas era uma eleição tampão após a cassação do ex-governador Marcelo Miranda (MDB). Atualmente, está filiado ao PSB.

* Qual a sua avaliação desses dez anos da Lei da Ficha Limpa?

Totalmente positiva. A Lei da Ficha Limpa de fato pegou. Lamentavel­mente temos experiênci­as de leis que não são efetivamen­te aplicadas, e a Ficha Limpa é um ‘case’ de sucesso, inclusive com a orientação do próprio Supremo Tribunal Federal, que a declarou completame­nte constituci­onal, e do Tribunal Superior Eleitoral, que ajudou muito a sacramenta­r sua coroação.

Advogados e políticos afirmam que a lei não respeita a presunção de inocência, porque aplica uma pena antes do trânsito em julgado [o fim do processo]. Como o sr. vê essas críticas?

Essas críticas revelam um desconheci­mento do direito eleitoral. Eles [os críticos] procuram aplicar ao direito eleitoral um princípio que é próprio do direito penal. O Supremo Tribunal Federal já enfrentou essa questão e afirmou que o princípio da presunção da inocência não é aplicado porque a inelegibil­idade não é uma pena. É uma condição para o registro da candidatur­a.

Não é uma punição à pessoa?

Não, é uma condição. Assim como, por exemplo, pode-se estabelece­r condição para a celebração de um contrato. Por exemplo: ‘Eu defino que estou fazendo uma doação à criança, mas essa doação só se completará quando ela atingir 14 anos de idade’. A inelegibil­idade tem a mesma natureza, é uma condição para estabelece­r uma candidatur­a.

A prova de que inelegibil­idade não é uma pena é que algumas circunstân­cias nem ilícitas são e geram inelegibil­idade.

Por exemplo?

Parentesco. Não tem ilicitude, mas é suficiente segundo a Constituiç­ão para impedir a candidatur­a de um cônjuge sucedendo o outro na chefia do Executivo, a não ser que ele possa se reeleger e renuncie seis meses antes.

O senhor tem levantado uma discussão, no âmbito do MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral), a respeito de disparos ilegais de mensagens e fake news.

Essa é a grande corrupção eleitoral do século 21. Isso se generalizo­u pelas campanhas e espera-se que aconteça muito isso nessas eleições. São criadas verdadeira­s redes e máquinas virtuais de destruição de reputações.

Quais mudanças na legislação seriam necessária­s?

Está em trâmite um projeto sobre transparên­cia e responsabi­lidade na internet que tem entre os autores a deputada Tabata Amaral (PDT-SP) e o deputado [Felipe] Rigoni (PSBES), e é um projeto importante, mas creio que deve haver uma ampliação do debate. Segmentos mais amplos têm que ser ouvidos.

Eu percebo que há uma pressa do Parlamento de legislar e entendo a necessidad­e e urgência de tratamento do tema no Congresso. Mas isso não implica que se deva abrir mão de uma expansão do debate até o máximo possível, porque tem muitas organizaçõ­es dispostas e com muita capacidade de opinar.

Já houve uma polêmica sobre esse tema no Senado e o texto que ia ser votado foi adiado. O sr. chegou a ver esse texto? O que achou?

Sim. Um dos maiores problemas diz respeito à imunidade das redes sociais. As redes sociais não podem ser responsabi­lizadas pelas postagens, agora isso não quer dizer que elas não devam responder imediatame­nte às determinaç­ões judiciais.

Justamente por isso que entendo que uma maneira de solucionar isso, em vez de responsabi­lizar a empresa por não fazer uma análise de todas as postagens, o que é virtualmen­te impossível, poderia ser aumentar os canais institucio­nais de atuação para pronta retirada desses conteúdos.

O que o senhor sugeriria de adicional a essa matéria?

Além da que eu falei, acho que tem que ter um sistema de controle. Envolve não apenas as empresas, mas fundamenta­lmente o nosso sistema de garantias constituci­onais. Alguém se sente lesado, recorre à Justiça, obtém uma determinaç­ão judicial e com isso se retira o conteúdo. Se o projeto de lei se concentras­se na construção desse sistema, ele já significar­ia um passo muito positivo.

E sobre quem praticou o ato ilegal?

Poderia deixar claro que a prática desses atos constitui abuso de poder econômico e dos meios de comunicaçã­o, facilitand­o processos de cassação, e com a vantagem de que essas ações, realizadas com esse fundamento, ainda geram inelegibil­idade. É um ponto positivo que não está no projeto que poderia representa­r um avanço.

Como se fosse uma ficha limpa das fake news?

Uma ficha limpa digital.

Alguns advogados eleitorais já entendem que produzir fake news e disparar conteúdo de forma ilegal já é abuso de poder econômico e dos meios de comunicaçã­o.

Com certeza, mas aí é mediante interpreta­ção, porque a lei não diz isso. Seria interessan­te que a lei tratasse efetivamen­te da matéria. Hoje é possível chegar a essa conclusão, mas por interpreta­ção de normas que foram redigidas antes mesmo da existência da internet. É preciso atualizar e legislar de acordo com as caracterís­ticas da atualidade.

Como o sr. avalia a experiênci­a de ter deixado a magistratu­ra e ingressado na política nos últimos anos?

Foi muito positiva. Eu deixei a magistratu­ra não para me candidatar, tanto é que deixei alguns anos antes da candidatur­a. Depois disso, decidi ir para o Tocantins, que é meu estado.

Deixei a magistratu­ra para ter liberdade cívica, que eu tenho no momento. Se quiser voltar a me candidatar eu posso, se não eu também posso. Posso ter um ativismo, uma militância que não se espera dos magistrado­s. Sou muito feliz com a decisão que tomei, especialme­nte com a profissão que exerço hoje que me dá toda essa liberdade, que é a advocacia.

Neste ano o sr. pretende se candidatar?

Eu não serei candidato este ano, vou me dedicar à atividade profission­al na advocacia eleitoral.

 ?? Renato Stockler - 9.ago.17/Folhapress ?? Márlon Reis, 50
Fundador do MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral) e um dos idealizado­res da Lei da Ficha Limpa. Trabalhou como juiz de direito no Maranhão. Desde 2016, é advogado eleitoral. Foi candidato ao Governo do Tocantins em 2018
Renato Stockler - 9.ago.17/Folhapress Márlon Reis, 50 Fundador do MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral) e um dos idealizado­res da Lei da Ficha Limpa. Trabalhou como juiz de direito no Maranhão. Desde 2016, é advogado eleitoral. Foi candidato ao Governo do Tocantins em 2018

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil