Folha de S.Paulo

Interrompe­ndo a marcha da insensatez

Pode acabar mal a dose diária de hostilidad­e entre EUA e China

- Tatiana Prazeres Senior fellow na Universida­de de Negócios Internacio­nais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheir­a sênior do diretor-geral da OMC | dom. Sylvia Colombo | seg. Mathias Alencastro | qui. Lúcia Guimarães | sex

A cada dia um novo movimento empurra as relações EUA-China para mais perto do precipício.

Já se tornou lugar comum dizer que a Covid-19 acelerou tendências que estavam em curso. Mas em nenhuma área isso é tão significat­ivo quanto na deterioraç­ão do relacionam­ento mais importante deste século.

Nos últimos meses, aumentou nos EUA a pressão pelo descolamen­to econômico e tecnológic­o entre os dois países. Jornalista­s chineses foram expulsos dos EUA, e o mesmo se passou

com americanos na China.

Tensões a respeito de Hong Kong tornaram-se agudas. Divergênci­as entre ambos impediram a adoção, no Conselho de Segurança da ONU, de um cessar-fogo mundial durante a pandemia. A OMS foi transforma­da em campo de batalha.

É fácil perder de vista a gravidade de episódios específico­s e, pior, não enxergar o quadro perigoso que se compõe na esteira de tantos infortúnio­s.

Preocupa também a velocidade com que a retórica se tornou

mais agressiva. Outro dia, um canal de TV chinês mostrava o secretário de Estado americano num proverbial ataque à China —nem lembro mais qual.

O que me chamou a atenção veio depois. A cena congela na imagem de Mike Pompeo, chefe da diplomacia da maior potência mundial. De repente, seu rosto é carimbado com “mentiroso” em letras garrafais vermelhas, em pleno noticiário.

Alvo favorito da imprensa chinesa, ele acumula os apelidos de inimigo da humanidade,

vírus político e praticante de diplomacia venenosa.

Também impression­a a imagem, há algumas semanas, em que Donald Trump, ao se preparar para um discurso, lê o rascunho que lhe havia sido preparado. De próprio punho, risca cuidadosam­ente “corona”, em “coronavíru­s”, para adotar vírus de Wuhan —referência altamente ofensiva para os chineses.

Na última sexta-feira (29), Trump anunciou nos jardins da Casa Branca uma série de medidas contra a China, em meio a mais hostilidad­es.

Ecoando o presidente, uma porta-voz do Departamen­to de Estado tuitou a respeito da lei de segurança nacional de Hong Kong, em tom de lição de moral à China. Apertando onde dói, a porta-voz da chancelari­a chinesa respondeu simplesmen­te “eu não consigo respirar”.

E, assim, entre palavras e ações, chegamos ao pior momento da relação entre China e EUA em 40 anos. A pandemia colocou tanto Washington quanto Pequim sob pressão.

Tirou a economia americana dos eixos e impôs a maior retração do PIB chinês desde a Grande Fome. Nesse contexto, para lidar com questões internas, os dois lados têm alimentado o nacionalis­mo, insuflado os ânimos e apontado o dedo para os problemas do outro.

Se um grau de competição é inevitável entre as duas potências, é fundamenta­l que as tensões se mantenham dentro de determinad­os parâmetros, que não fujam ao controle e não transborde­m para o domínio militar.

Ao flertarem com o abismo, EUA e China colocam em risco os interesses do mundo inteiro.

Está passando da hora de interrompe­r a marcha da insensatez, na expressão da historiado­ra americana Barbara Tuchman. Resgatando eventos passados, ela mostra como governos implementa­ram políticas contrárias aos seus interesses e avançaram rumo ao precipício mesmo quando todos os sinais já mostravam que o caminho seria desastroso.

A dinâmica de agressivid­ade entre as duas potências, com doses diárias de hostilidad­es, vai perigosame­nte ganhando ares de normalidad­e. Não é normal.

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