Interrompendo a marcha da insensatez
Pode acabar mal a dose diária de hostilidade entre EUA e China
A cada dia um novo movimento empurra as relações EUA-China para mais perto do precipício.
Já se tornou lugar comum dizer que a Covid-19 acelerou tendências que estavam em curso. Mas em nenhuma área isso é tão significativo quanto na deterioração do relacionamento mais importante deste século.
Nos últimos meses, aumentou nos EUA a pressão pelo descolamento econômico e tecnológico entre os dois países. Jornalistas chineses foram expulsos dos EUA, e o mesmo se passou
com americanos na China.
Tensões a respeito de Hong Kong tornaram-se agudas. Divergências entre ambos impediram a adoção, no Conselho de Segurança da ONU, de um cessar-fogo mundial durante a pandemia. A OMS foi transformada em campo de batalha.
É fácil perder de vista a gravidade de episódios específicos e, pior, não enxergar o quadro perigoso que se compõe na esteira de tantos infortúnios.
Preocupa também a velocidade com que a retórica se tornou
mais agressiva. Outro dia, um canal de TV chinês mostrava o secretário de Estado americano num proverbial ataque à China —nem lembro mais qual.
O que me chamou a atenção veio depois. A cena congela na imagem de Mike Pompeo, chefe da diplomacia da maior potência mundial. De repente, seu rosto é carimbado com “mentiroso” em letras garrafais vermelhas, em pleno noticiário.
Alvo favorito da imprensa chinesa, ele acumula os apelidos de inimigo da humanidade,
vírus político e praticante de diplomacia venenosa.
Também impressiona a imagem, há algumas semanas, em que Donald Trump, ao se preparar para um discurso, lê o rascunho que lhe havia sido preparado. De próprio punho, risca cuidadosamente “corona”, em “coronavírus”, para adotar vírus de Wuhan —referência altamente ofensiva para os chineses.
Na última sexta-feira (29), Trump anunciou nos jardins da Casa Branca uma série de medidas contra a China, em meio a mais hostilidades.
Ecoando o presidente, uma porta-voz do Departamento de Estado tuitou a respeito da lei de segurança nacional de Hong Kong, em tom de lição de moral à China. Apertando onde dói, a porta-voz da chancelaria chinesa respondeu simplesmente “eu não consigo respirar”.
E, assim, entre palavras e ações, chegamos ao pior momento da relação entre China e EUA em 40 anos. A pandemia colocou tanto Washington quanto Pequim sob pressão.
Tirou a economia americana dos eixos e impôs a maior retração do PIB chinês desde a Grande Fome. Nesse contexto, para lidar com questões internas, os dois lados têm alimentado o nacionalismo, insuflado os ânimos e apontado o dedo para os problemas do outro.
Se um grau de competição é inevitável entre as duas potências, é fundamental que as tensões se mantenham dentro de determinados parâmetros, que não fujam ao controle e não transbordem para o domínio militar.
Ao flertarem com o abismo, EUA e China colocam em risco os interesses do mundo inteiro.
Está passando da hora de interromper a marcha da insensatez, na expressão da historiadora americana Barbara Tuchman. Resgatando eventos passados, ela mostra como governos implementaram políticas contrárias aos seus interesses e avançaram rumo ao precipício mesmo quando todos os sinais já mostravam que o caminho seria desastroso.
A dinâmica de agressividade entre as duas potências, com doses diárias de hostilidades, vai perigosamente ganhando ares de normalidade. Não é normal.