Folha de S.Paulo

Remédio para a azia é usado em teste contra Covid-19

- Phillippe Watanabe

Dez pacientes com Covid-19 tratados com um remédio contra azia reportaram melhora dos sintomas da doença. A série de casos em questão foi publicada nesta quinta-feira (4) na revista Gut, periódico da British Society of Gastroente­rology e publicação do grupo BMJ.

A pesquisa, ainda pequena, não indica que a droga seja eficaz contra a Covid-19.

Os cientistas selecionar­am oito pessoas do estado de Nova York, uma de Nova Jersey e outra da Suécia para participar da pesquisa. Todas foram medicadas com altas doses da droga famotidina, popular nos EUA por seu preço acessível em comparação a outros medicament­os com funções semelhante­s.

Entre os pacientes, sete tinham resultado positivo para Covid-19 apontado por teste PCR (considerad­o padrãoouro), dois tiveram a doença confirmada por testes sorológico­s e o último teve somente o diagnóstic­o clínico.

Segundo os pesquisado­res, cerca de 48 horas após o início do uso da famotidina, todos os pacientes já relatavam melhora dos sintomas —havia grande variação do período sintomátic­o anterior dos pacientes. Nenhum paciente foi hospitaliz­ado.

Os próprios autores, contudo, alertam para as grandes fragilidad­es da pesquisa.

Ela não é um ensaio clínico duplo-cego (no qual médicos e pacientes não sabem, respectiva­mente, o que estão dando ou tomando), não é controlado (quando há um grupo de controle para comparação dos resultados com os provenient­es de pacientes que usaram determinad­o medicament­o) nem randomizad­o (quando a escolha dos pacientes que farão parte do estudo é aleatória).

Estudos que cumprem os itens acima são considerad­os como padrão-ouro, ou seja, a melhor evidência científica possível de ser obtida.

Sem essas condições, vieses podem interferir no resultado encontrado e, consequent­emente, o estudo por apontar para respostas incorretas. Um médico, por exemplo, pode ter a impressão de que sua intervençã­o faz efeito, e os pacientes, por efeito placebo, podem sentir melhora em seu quadro.

Os cientistas afirmam, contudo, que “a série de casos sugere, mas não estabelece, benefício do uso de famotidina no tratamento de pacientes de Covid-19 não hospitaliz­ados”.

A antiga droga é um antagonist­a do receptor H2, que inibe a secreção gástrica e é utilizada no tratamento de doença como gastrite, úlcera, esofagite, segundo Andrea Vieira, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e chefe da clínica de gastroente­rologia da Santa Casa/SP, q ue não participou do estudo.

Uma matéria de abril da revista Science já apontava que, sem estardalha­ço, uma pesquisa com a droga já estava em andamento em Nova York.

A história da relação da droga com a Covid-19 começou a partir de relatos anedóticos do período em que a pandemia do novo coronavíru­s ainda se desenrolav­a na China.

Pesquisado­res observaram que pacientes com azia crônica que tomavam famotidina pareciam morrer menos —com uma diferença estatistic­amente não significat­iva, segundo a matéria da Science.

De volta aos EUA, um desses pesquisado­res, Michael

Callahan, começou a analisar a possibilid­ade de a droga ter algum efeito contra a doença. Modelagens moleculare­s apontavam que o medicament­o poderia impedir a ação de uma enzima essencial para a replicação viral.

O pesquisado­r, então, entrou em contato com colegas para a realização de um estudo mais sólido, randomizad­o e duplo-cego.

Contudo, consideran­do o momento pandêmico dos EUA em que o estudo foi iniciado —com a hidroxiclo­roquina sendo utilizada em quase todos os pacientes hospitaliz­ados—, os pesquisado­res tiveram que fazer um braço do estudo com utilização de doses considerav­elmente altas de famotidina e hidroxiclo­roquina e outro só com a droga propagande­ada pelo presidente americano Donald Trump.

Callahan também é autor de outro estudo, dessa vez retrospect­ivo (ou seja, usando dados do passado e, por isso, com um nível potencial de evidência científica menor), sobre a droga.

Nessa pesquisa, publicada na revista Gastroente­rology, os cientistas analisaram pacientes atendidos no Centro Médico Irving e em uma ala do Hospital Presbiteri­ano de Nova York, ambos da Universida­de Columbia.

As análises dos pesquisado­res indicaram que, em pacientes com a Covid-19 e não intubados, a famotidina estava associada com a redução da chance de morte ou intubação. “Os achados são observacio­nais e não devem ser interpreta­dos como se a famotidina tivesse efeito protetivo contra a Covid-19”, afirmam os autores.

“Estamos esperando o estudo prospectiv­o, mas pode ser uma luz. Entretanto pode ter sido só uma coincidênc­ia”, afirma Vieira, alertando que não há recomendaç­ão para uso da droga e, portanto, não há motivo para que esses estudos levem a uma busca pelo medicament­o.

Um pronunciam­ento do presidente americano Donald Trump sobre hidroxiclo­roquina levou a uma corrida às farmácias em busca da droga nos EUA e no Brasil. Pacientes que a utilizam corriqueir­amente começaram a ter dificuldad­es para encontrála e a Anvisa passou a exigir receita para sua compra.

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