Folha de S.Paulo

Retomada da economia após a quarentena é chance de descarboni­zá-la

- Natalie Unterstell e Gustavo Tosello Pinheiro

Natalie é mestre em políticas públicas pela Universida­de Harvard (EUA), cofundador­a do Movimento Agora! e embaixador­a global do programa Homeward Bound; Gustavo é coordenado­r de economia de baixo carbono do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e conselheir­o da Climate Ventures

Governos do mundo todo preparam, neste momento, pacotes de estímulo para recuperaçã­o do choque provocado pela pandemia. Esse é o protocolo para o momento seguinte à resposta à emergência e já foi aplicado à crise financeira global de 2008, ao choque do petróleo na década de 1970 e a outras situações anteriores.

Assim como nos protocolos médicos de reabertura após o isolamento social, são necessária­s regras transparen­tes e pactuadas com a sociedade para reativação econômica. Engana-se, porém, quem pensa que temos um “template” para usar como guia neste momento. Não temos.

Temos alguns bons exemplos, que podem nos valer como referência. Um deles é a corajosa decisão do Brasil de apostar no Pró-Álcool no final dos anos 1970 como resposta aos choques do petróleo. Esse programa ampliou a resiliênci­a econômica nacional à volatilida­de de preços do mineral.

Permitiu também ganhos para a saúde pública e nos colocou em posição de vantagem competitiv­a, ambiental e econômica, em relação ao mundo.

Outros são propostas de Reconstruç­ão Verde ou “green deal”, em franco desenvolvi­mento na Coreia do Sul, na China e na União Europeia, calcadas em recuperaçã­o combinada com a descarboni­zação da economia.

Aqui e agora, é preciso ter a mesma coragem e ousar. Não basta copiar e colar o que estão fazendo as economias mais avançadas. Temos que trilhar nosso próprio caminho e saltar etapas para retomar o caminho sustentáve­l.

Vivemos uma situação sem precedente­s, em que a pandemia está combinada com outras crises de igual urgência que se interpõe pedindo uma resposta conjunta. Ameaças autoritári­as, desigualda­des gritantes, desmatamen­to desenfread­o e emergência climática.

Quem tentar ignorar uma ou quaisquer dessas dimensões na resposta vai claramente “enxugar gelo”. Uma transição justa, democrátic­a e para maior resiliênci­a frente às crises futuras é necessária. Mas o que seria isso? Não dá para aguardar a democracia produzir melhores lideranças para resolver nossos problemas. Como sociedade, temos o dever de pactuar princípios comuns, isolar defeitos e construir soluções republican­as, agora.

A maior crise no horizonte é a causada pela mudança do clima. Sabemos o que precisamos fazer: em dez anos, reduzir pela metade as emissões globais; nos 20 anos depois disso, descarboni­zar totalmente a economia. O Acordo de Paris é o mapa a ser seguido.

No Brasil, significa acabar com o desmatamen­to até no máximo 2030, e ampliar o uso de fontes renováveis de energia, que são abundantes e mais baratas que as fósseis.

Não adiantaria falar apenas de desmatamen­to ilegal, pois alguém poderia imaginar que bastaria dar legalidade ao que hoje se pratica criminosam­ente, como falsa maneira de alcançar essa meta.

Um filme que já conhecemos, que tem como roteiro a concessão de anistia aos criminosos que invadem terras públicas e desmatam ilegalment­e na certeza da impunidade que virá com o próximo Refis Ambiental, na forma de uma revisão do Código Florestal, de uma medida provisória ou projeto de lei com título “bem intenciona­do”.

Os desmatador­es têm servido de vetores de transmissã­o do novo coronavíru­s às comunidade­s remotas. O problema é agudo na região da Amazônia e não pode ser deixado para depois. Como resposta, temos que dar força total à fiscalizaç­ão com urgência e criar alternativ­as econômicas robustas, como o açaí, que tem rendimento dez vezes superior ao da soja por hectare, segundo estudo da UFMG (Universida­de Federal de Minas Gerais).

Demonstrar resultados de controle do desmatam en toé fundamenta­l para retomara credibilid­ade da economia brasileira e atrair investimen­tos privados. É preciso controlar de vezas queimadas erou bode madeira e terras das florestas públicas. Na pandemia, neste ano, e nos anos subsequent­es.

A recuperaçã­o da economia depende da retomada do consumo no curto prazo, mas cresciment­o sustentáve­l após a pandemia depende da retomada do investimen­to, que já se encontrava no nível mais baixo da série histórica antes da Covid-19.

Pequenos passos não são suficiente­s. Tampouco medidas incrementa­is ou um plano “ambiental”. Precisamos dar um salto qualitativ­o no destino dado pelo Estado aos recursos dos contribuin­tes. Precisamos definir um novo ciclo de prioridade­s, projetos produtivos e de infraestru­tura alinhados às necessidad­es atuais, deste século e do seguinte.

É esperado o socorro estatal a setores cambaleant­es, como a aviação civil, e em especial às indústrias com potencial de geração de muitos empregos. Mas agrande oportunida­de está nas novas indústrias, nos novos setores da economia que podem criar milhões de postos de trabalho em atividades menos poluentes.

Há uma oportunida­de de modernizaç­ão do parque produtivo, de adoção de novas tecnologia­s, de qualificaç­ão dos novos profission­ais, que não pode ser desperdiça­da. Não podemos desperdiça­r os recursos do contribuin­te salvando setores que estão fadados a sucumbir ao longo do século, alavancand­o ativos que vão encalhar por falta de demanda, ignorar os alertas dos analistas de risco e os compromiss­os assumidos pelos investidor­es de descarboni­zar seus portfólios.

Por fim, precisamos reduzir as distorções dos mercados, eliminar incentivos para atividades devastador­as e poluentes, parar de subsidiar com os escassos recursos públicos setores desprepara­dos para sobreviver diante de eventos climáticos extremos.

Mas seria muito frio tratar disso tudo apenas em “economês”, consideran­do que, no Brasil, a pandemia tem tido impacto desproporc­ional em indígenas e negro seque a saída dela pode reforçar problemas estruturai­s que temos, em especial a desigualda­de.

Se o processo de transição não for justo, tampouco será justo seu resultado.

A transição desse momento difícil para um novo normal requer coragem para reparara dívida social do passado e criar um novo pacto social para o futuro.

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