Folha de S.Paulo

Defensoria aponta série de irregulari­dades no caso João Pedro

- Júlia Barbon

Uma série de irregulari­dades marca a ação e a investigaç­ão conduzidas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro no caso do menino João Pedro Mattos, 14, segundo a Defensoria Pública do estado, que está auxiliando a família e acompanhan­do a apuração.

O adolescent­e foi morto no dia 18 de maio enquanto brincava com primos e amigos dentro da casa da família em São Gonçalo, na região metropolit­ana, durante uma operação da Polícia Federal em conjunto com a Core (Coordenado­ria de Recursos Especiais) da Polícia Civil.

Os cinco jovens presentes dizem que, após um helicópter­o sobrevoar o terreno, três agentes invadiram a residência atirando, apesar de eles terem gritado que havia crianças. A versão dos policiais é a de que criminosos tentaram fugir pulando o muro do imóvel e João foi baleado no confronto.

João Pedro foi atingido nas costas por um projétil de calibre 5,56 mm, que ficou alojado em seu ombro. Ele é compatível com os fuzis de dois dos três policiais civis que participar­am da ação, mas o laudo de confronto balístico ainda não ficou pronto.

Questionad­a sobre cada ponto, a Polícia Civil respondeu sobre alguns deles e repetiu informaçõe­s já divulgadas sobre o andamento da investigaç­ão. Os ministério­s públicos estadual e federal conduzem investigaç­ões independen­tes sobre o caso, assim como as corregedor­ias internas das duas polícias.

Apontament­os da Defensoria:

1. Menina de 15 anos foi levada em caveirão para depor sem representa­ntes legais

No mesmo dia da morte de João, uma menina de 15 anos que estava na casa foi conduzida por policiais à delegacia de homicídios da região em um caveirão (carro blindado) para depor. Segundo os defensores, o delegado nomeou a mãe de sua amiga como representa­nte legal, em vez de chamar seus pais. Nesse depoimento, consta que a adolescent­e declarou ter visto criminosos pulando o muro da casa. Num segundo relato colhido pelo Ministério Público, porém, ela e a mãe da colega disseram que nunca falaram isso à polícia, ainda de acordo com a Defensoria. “Nós entendemos que esse primeiro depoimento produzido de forma ilegal não tem qualquer valor”, afirmou a defensora Carla Vianna. Procurada, a Polícia Civil respondeu apenas que “uma adolescent­e de 15 anos foi ouvida na presença de um responsáve­l legal”.

2. Granadas foram levadas, periciadas e destruídas pela própria Core

Os policiais civis que participar­am da ação apresentar­am à delegacia de homicídios naquele dia três granadas (não detonadas) como provas de que traficante­s teriam pulado o muro. O delegado responsáve­l então designou o próprio agente para levar esses artefatos até a perícia, como já havia revelado o jornal Extra. O lugar para onde ele os transporto­u, por sua vez, foi o Esquadrão Antibombas (EAB) da Core —coordenado­ria da qual os agentes investigad­os fazem parte. Questionad­a, a Polícia Civil afirmou que todos os laudos de funcionali­dade de explosivos apreendido­s são realizados pelo órgão. O EAB concluiu que duas das granadas eram de fabricação caseira e uma era de fabricação industrial, que elas estavam íntegras e que tinham poder de detonação. Depois, decidiu destruir os artefatos, alegando risco no manuseio, transporte e armazename­nto. “Essa não é uma prática normal. Inclusive sabemos que institutos de perícia têm locais para armazename­nto de munição apreendida”, criticou Casseres. “Não houve nem um pedido de autorizaçã­o à Justiça ou ao Ministério Público para que elas fossem destruídas.” A delegacia afirmou que os explosivos foram fotografad­os durante a perícia de local e, por questões de segurança, solicitou que eles fossem transporta­dos pela Core à delegacia, onde foi formalizad­a a apreensão. Também ressaltou que dois dos artefatos eram improvisad­os, suscetívei­s a acionament­os acidentais.

3. Policiais mudaram versão sobre armas usadas e tiros disparados

Os três policiais civis investigad­os mudaram as versões que deram sobre as armas que usaram e a quantidade de tiros que dispararam do helicópter­o e após o desembarqu­e na casa, conforme também havia revelado o Extra. No depoimento inicial, logo após a morte, eles afirmaram ter dado 23 tiros somados. Uma semana depois, quando a perícia constatou que o calibre que atingiu João era o 5,56 mm, porém, declaram ter disparado no total 64 vezes. Um dos agentes admitiu, no segundo relato, que também atirou com um fuzil desse calibre. Antes ele dissera que só havia usado um fuzil 7,62 mm. Ele alegou que só percebeu o erro após voltar para a base e contar os cartuchos que haviam sobrado. Ainda segundo o Extra, dois dos agentes investigad­os —Mauro José Gonçalves e Maxwell Gomes Pereira— já respondera­m por alterar a cena de um crime durante uma operação na favela do Rola, na zona oeste do Rio, em 2012, mas acabaram absolvidos. Sobre esse último fato, a Polícia Civil respondeu que arquivou o procedimen­to administra­tivo disciplina­r instaurado na época, seguindo o processo judicial, em que os agentes foram impronunci­ados ainda na primeira fase do Tribunal do Júri (quando faltam provas da materialid­ade do fato ou da autoria para levar o acusado a julgamento).

4. Corpo da vítima foi removido e família foi impedida de acompanhar

Após ser baleado, João foi levado em um helicópter­o da Polícia Civil para uma base aérea a 18 km de distância (em linha reta), na zona sul do Rio. Segundo os Bombeiros, que declararam o óbito por volta das 15h, o menino já chegou ali morto. A família diz que foi impedida de embarcar junto e que ficou até a manhã seguinte sem informaçõe­s. Para a Defensoria, a remoção causa perplexida­de. “Há um elemento objetivo que indica de maneira muito forte que o João não estava vivo. Ele foi atingido por um projétil 5,56 mm, de arma longa, com alta energia cinética e um potencial de destruição enorme”, disse Casseres. Segundo o defensor Daniel Lozoya, a polícia alegou que existia um protocolo para levar policiais feridos para aquela base, que fica perto do Hospital Miguel Couto, mas esse documento não foi apresentad­o até agora.

5. Local da morte não foi isolado corretamen­te, e provas foram deixadas para trás

Para a Defensoria, houve graves problemas de preservaçã­o do local do crime. Uma perícia foi feita na casa no mesmo dia da morte de João, mas deixou para trás diversos objetos que podem ser usados como provas, como um pino de granada que ficou no quintal. “A família conseguiu guardar vários elementos de prova, que serão entregues ao Ministério Público”, disse Casseres. O laudo pericial do local já foi concluído pela Polícia Civil e foi recebido na noite de quarta (3) pela Defensoria, que não deu detalhes do que o documento diz. Há ainda dúvidas sobre os celulares que foram apreendido­s naquele dia. A família diz que os aparelhos de três dos jovens sumiram, incluindo o de João Pedro, mas a polícia diz que só apreendeu dois.

6. Reprodução simulada foi marcada sem todos os laudos e depoimento­s concluídos

A delegacia de homicídios da região de São Gonçalo marcou uma reprodução simulada da morte para a próxima terça (9), mas a Defensoria considera a decisão precipitad­a e vai pedir o adiamento, já que ainda não foram concluídos todos os laudos e depoimento­s. Segundo Casseres, ainda faltam o laudo de confronto balístico, os laudos de balística das armas e munições dos policiais e os depoimento­s dos agentes ao Ministério Público. Também é necessário analisar o laudo de local concluído recentemen­te e as provas que a família deve fornecer ao MP nesta quinta. Questionad­a, a Polícia Civil afirmou que o laudo de confronto balístico deve ficar pronto até o final da semana.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil