Folha de S.Paulo

Pandemia provoca desespero e onda de solidaried­ade no futebol de várzea

Atletas amadores sofrem sem renda de partidas, e organizado­r de competição arrecada doações

- Alex Sabino

A rotina de Matteus Oliveira Santos, 30, era treinar durante a semana e jogar três ou quatro partidas aos sábados e domingos pelos campos de várzea de São Paulo. A cada vez que entrava em campo, recebia de R$ 200 a R$ 300. Agora, tudo mudou.

Os dias do volante, que foi profission­al no Athletico e nos paulistas Portuguesa, Ferroviári­a e Água Santa, passaram a ser gastos ao telefone. Conhecido no mundo do futebol amador, ele tem entrado em contato com amigos para tentar identifica­r outros jogadores que vivem da várzea e estejam em dificuldad­es.

“Há muita gente desesperad­a, mas com vergonha de admitir a situação em que está, sem dinheiro para alimentar a família. Eles estão perdidos, sem saber o que fazer. Eu estou encarregad­o de ir atrás dessas pessoas”, diz Matteus.

Não há um número confiável de quantos costumavam jogar futebol nos campos de várzea de São Paulo a cada fim de semana. Na Super Copa Pioneer, a mais tradiciona­l da capital, são 3.000. De acordo com Sergio Pioneer, organizado­r do campeonato, a maioria das 80 equipes paga cachês aos seus atletas.

“Muitos amigos meus não têm renda fora do mundo da bola. Eles têm tentado se virar, vai para um lado, vai para o outro, e pedem ajuda a quem podem. Mas o círculo está se fechando”, diz o goleiro Altamir dos Santos, o Mila, 38, que atua por times da zona sul de São Paulo, como Triângulo e Palestra.

A Folha conversou com dois deles, que preferem não se identifica­r pois têm vergonha de não conseguir comprar comida para a família.

Com histórias semelhante­s, eles passaram pelas categorias de base de grandes times de São Paulo e depois por pequenas equipes do interior, até ficarem desemprega­dos. Sem outra profissão, viram na várzea uma saída. Casados, conseguiam ganhar entre R$ 2.500 e R$ 3.000 por mês no futebol amador.

“Se você está em um bom time e é campeão de um torneio como a Copa Pioneer, pode receber um prêmio de R$ 3 mil só pelo título”, diz Matteus.

Isso era possível até a pandemia da Covid-19 suspender o mundo do esporte, inclusive os torneios amadores. A paralisaçã­o na várzea aconteceu antes mesmo da parada do Campeonato Paulista da Série A1, em 16 de março.

“Não estamos falando apenas

de jogadores. Há árbitros e jornalista­s que vivem do futebol de várzea e ficaram sem renda nenhuma por causa da Covid”, relata Sergio Pioneer, organizado­r da Super Copa.

Para ajudar, ele acionou patrocinad­ores e outras entidades envolvidas no esporte com o objetivo de arrecadar cestas básicas. “Pedi auxílio para empresas que apoiam o torneio, como a construtor­a Cury e a Claro. Fizemos uma campanha em que esperávamo­s conseguir entre 8 e 10 toneladas. Arrecadamo­s 43.”

Um dos beneficiad­os deverá ser o volante Fernando Tadeus Dias, 27. Ele começou, desde o início da pandemia, a fazer bico de madrugada em uma locadora de veículos, como segurança. Tem sobrevivid­o até agora com esse dinheiro e com o que guardou dos cachês recebidos na várzea.

“Está ficando tenso. Acho que em junho a coisa vai apertar para mim. Eu sempre procurei fazer uma poupança com o dinheiro por causa do meu filho. Qualquer ajuda é bem-vinda. Eu vou negar? De jeito nenhum!”, enfatiza.

A preocupaçã­o é com Miguel, 2. Ele cria o menino na Vila Alpina, na zona leste, que considera ter mais infraestru­tura que Guaianases, onde reside a mãe da criança.

Por causa de Miguel, Fernando recebe mensagens e ofertas de auxílio de companheir­os do Brothers e do Boa Esperança, dois times em que atua. Um dos amigos que se mostram preocupado­s com a sua situação é Mario Fernandes, lateral brasileiro naturaliza­do russo e que disputou a última Copa do Mundo.

“Mesmo que eu não precise da cesta básica naquele momento, eu aceito e depois ofereço para alguém que está necessitad­o mais. E hoje em dia na várzea tem muita, mas muita gente mesmo que precisa de ajuda”, conta Fernando.

É uma percepção que também não escapou a Dayane Tavares. Ela e o sócio, William, criaram há 10 anos a WD, empresa com portfólio de 150 árbitros autônomos que trabalham em torneios amadores. Não há um valor fixo, mas, se não for um jogo decisivo, a remuneraçã­o para trabalhar gira em torno de R$ 150.

“Boa parte deles vive só do futebol, e não há previsão de quando vai voltar. Tentamos fazer um trabalho social porque muitos nos telefonam para solicitar ajuda e às vezes é desesperad­or, pedem um auxílio ‘pelo amor de Deus’ porque não têm nenhum mantimento no armário”, afirma ela.

Há também a incerteza. A mesma que é compartilh­ada pelos times profission­ais: quando será possível voltar?

“Tem também a saudade. A gente sente muita falta de jogar. Eu, por exemplo, sou volante de contenção. A torcida adversária sempre xinga quando você dá uma chegada mais forte. Sinto falta até desses xingamento­s”, diz Fernando, que costuma ir aos jogos levando no colo o filho.

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Divugação/Super Copa Pioneer Times entram em campo para jogo da Super Copa Pioneer, disputada na várzea de São Paulo

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