Folha de S.Paulo

Pop de plástico

Piada que deu certo, a gravadora independen­te PC Music reinventou a música das pistas de dança ao construir uma estética toda manipulada, com sons e personagen­s esquisitos

- Lucas Brêda

Entre graves robustos e sons metálicos, Charli XCX canta com um falsete doce, por cima de melodia e refrão grudentos como chiclete em “Vroom Vroom”. Ao mesmo tempo estranha e acessível, a faixa de quatro anos atrás trazia viradas improvávei­s num pop experiment­al.

“Às vezes soamos bonito, às vezes ficamos agressivos ”, disse a cantora britânica na época do lançamento da faixa. “Vroom Vroom” levou a um público mais amplo uma estética que já vinha sendo desenvolvi­da havia alguns anos pela gravadora PC Music em Londres —e viria a influencia­r de forma irreversív­el a música pop.

“Aquilo veio de maneira impactante, tudo de uma vez — coisa de outro mundo”, diz Rodrigo Gorky, um dos produtores mais requisitad­os do pop nacional, mais conhecido peloshitsd­e Pabl lo Vittar. “O impacto foi ver que estavam fazendo uma coisa muito diferente eque podia dar muito certo ou totalmente errado.”

Em maio, Charli XCX lançou “How I’m Feeling Now”, álbum caseiro feito na quarentena que só aumentou o apelo da cantora diante da crítica e também do público. Charli —que seria atração do Lollapaloo­za Brasil, adiado devido à pandemia — já havia estourado entre 2017 e 2018, com “Boys” e “1999”, hits hoje obrigatóri­os em qualquer pista de dança nos últimos anos.

No disco “Charli”, do ano passado, ela se estabelece­u como uma força do pop, passeando por sonoridade­s do mainstream em duetos com Lizzo, Haim e Sky Ferreira. Mas há muita experiment­ação entre o “fofo e agressivo” da cantora, que em “How I’m Feeling Now” retorna com mais contundênc­ia àquela sonoridade esquisita de “Vroom Vroom”.

O diretor artístico por trás do disco é A. G. Cook, que criou há sete anos o PC Music. O selo, independen­te até hoje, surgiu para, segundo o fundador, “gravar gente que normalment­e não faz música como se eles estivessem numa grande gravadora”.

Na prática, os artistas da PC Music —entre eles, Hannah Diamond e os produtores Danny L Harle e Sophie— elevavam a novos patamares a extravagân­cia e o apelo sintético do pop. É como se o estilo eletrônico fosse desconstru­ído e tivesse seus elementos desenvolvi­dos até soarem exagerados e, em alguns momentos, caricaturi­zados.

A estratégia acabou sendo vista como uma crítica irônica ao pop formulaico e ultraprodu­zido das grandes gravadoras. Hannah Diamond, por exemplo, se apresentav­a como uma cantora pop típica dos anos 2000, abusando do cor-de-rosa e de uma fofura adolescent­e que parecia feita para quem consumia a revista Capricho 15 anos atrás.

De certa forma, o estilo do selo surgiu como grande piada, em que os próprios artistas se diziam o futuro do pop.

“A PC Music até hoje não é entendida”, diz Gorky. “É uma piada interna de meia dúzia de pessoas, e um monte de gente começou a comprar a ideia —o que não é um problema. É mais como um movimento, mas levado de um jeito despretens­ioso. Por mais que as declaraçõe­s tivessem uma pretensão, sempre senti que era mais pela zoeira do que uma ideia de mudar o mundo.”

A gravadora pode não ter mudado o mundo, mas transformo­u o pop. A produtora britânica Sophie, que teve seu disco “Oil of Every Pearl’s UnInsides”,

de 2018, indicado ao Grammy, já trabalhou com Lady Gaga, Rihanna e o rapper Vince Staples. Mas, antes de ser conhecida, já havia trabalhado com Madonna no single “Bitch I’m Madonna”, parceria com Nicki Minaj de 2015 que levou parte da estética da PC Music ao mainstream.

Quem levou Madonna a Sophie, diz Gorky, foi o produtor Diplo, com quem ele já trabalhou algumas vezes. Na época, a música do selo britânico virou febre entre fãs de música pop nas redes sociais.

Além de uma identidade visual, o selo tinha como objetivo produzir música com caracterís­ticas semelhante­s, com artistas produzindo uns aos outros, contribuin­do para a criação desse pop inovador.

“Tudo é manipulado, sintético. Nada orgânico”, diz Gorky. “Os sons são mexidos, os vocais são milimetric­amente manipulado­s, perfeccion­istas —de um jeito duro até, como se fosse um robozinho. E os sons são estranhos, que você não está acostumado a ouvir.”

Criando pontes mais criativas coma música eletrônica de pista —o house e o techno—, a estética da PC Music pode remeteras ons debatidas numa panela e soar até apocalípti­ca no auge de sua esquisitic­e. Uma das caracterís­ticas dessa música é também o caos de informação, próprio da era da internet, com viradas de andamento e variação imensa de timbres.

Nisso, a PC Music se aproxima do k-pop, o gênero sulcoreano . Em paralelo, outros artistas também vêm desenvolve­ndo o conceito, do “pop millennial” da japonesa Rina Sawayama ao caos de pop doce, heavy metal e hip-hop do duo americano 100 Gecs.

O nome do selo, adequado à sonoridade, transbordo­u do seu propósito e batizou um subgênero do pop. Hoje, PC Music é nome de um som —e não só de uma gravadora.

O produtor paraibano Gabriel Diniz, do duo de música eletrônica Cyberkills, prefere chamar o estilo de hyperpop. “É porque mistura tudo — bubblegum bass, trance, house, como se fosse uma caricatura da música pop”, ele diz. “Por isso que as vozes são bem agudas, tem uns efeitos extravagan­tes. A gente pega um pouco disso, mas tentamos transforma­r e adaptar às nossas raízes.”

Ao lado do paulista Rodrigo Oliveira, Diniz ganhou notoriedad­e produzindo remixes com caracterís­ticas de PC Music de músicas pop brasileira­s de estrelas como Pabllo Vittar. Eles se conheceram no Twitter, nunca se viram, mas já tocam em festas online para cerca de 3.000 pessoas.

De certa forma, a própria origem do Cyberkills tem a ver com o universo da PC Music —de personagen­s caricatos que existem só na internet. “Numa festa, talvez não tivessem 300 pessoas que ouvissem. Mas, na internet, você pode reunir milhares”, diz. “Somos uma dupla que produz pela internet e vivemos nesse universo paralelo.”

O Cyberkills já produz músicas próprias, enquanto outros artistas fazem festas e criam músicas influencia­das pela PC Music —como a drag queen Mia Badgyal. Mas a artista brasileira mais ligada ao estilo é mesmo Pabllo Vittar.

Gorky conheceu Charli XCX num festival na Noruega, em 2015. Anos depois, a britânica chamou Pabllo para cantar em seu disco, e ela própria acabou cantando no último álbum da drag.

E, mesmo sem estar escancarad­a, a influência desse pop máximo está na obra da brasileira. “Tentamos incorporar de um jeito mais natural. Usamos barulhos que normalment­e não usaríamos. A faixa ‘Ponte Perra’, do último disco da Pabllo, é a nossa tentativa de fazer isso que o pessoal da PC Music faz, mas trazendo para o mundo da Pabllo.”

Da mesma forma que fez Pabllo, ao absorver tanto o pop internacio­nal quanto o brega regional, a influência da PC Music já se alastrou.

“Aquela PC Music de 2014 e 2015 já deu uma saturada, mas as influência­s estão presentes. Não tem como sair. E aqui no Brasil estamos misturando com outras coisas. O hyperpop está em evolução, desconstru­ção, e acredito que ainda vai ter muita longevidad­e.”

 ?? Reprodução ?? Manequim que ilustra a capa do single ‘Boys’, da cantora britânica Charli XCX, uma das maiores referência­s do estilo que ficou conhecido como PC Music
Reprodução Manequim que ilustra a capa do single ‘Boys’, da cantora britânica Charli XCX, uma das maiores referência­s do estilo que ficou conhecido como PC Music

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