Folha de S.Paulo

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Ciência mundial nunca produziu tanto e tão rapidament­e, e pressa por resultados sobre Covid-19 eleva riscos de erros

- Sabine Righetti e Estevão Gama

são paulo A anulação de dois estudos, um deles sobre o uso de cloroquina e hidroxiclo­roquina em pacientes com Covid-19, em duas das principais revistas científica­s acendeu um alerta sobre a disseminaç­ão dos resultados de pesquisa sobre o novo coronavíru­s.

A ciência mundial nunca produziu tanto e tão rapidament­e: a cada hora, sete novos estudos sobre coronavíru­s são publicados. O problema é que o número de trabalhos científico­s anulados após disseminaç­ão também cresceu, o que tem preocupado a comunidade acadêmica.

Os trabalhos anulados, publicados na inglesa Lancet e na americana The New England Journal of Medicine, usaram como base dados de pessoas internadas com Covid-19 fornecidos pela empresa Surgispher­e. Como os autores não puderam verificar a autenticid­ade dos dados, os estudos foram anulados.

Na prática, todo resultado apresentad­o por cientistas deve passar por revisão de especialis­tas da mesma área do conhecimen­to —o que leva o nome de “avaliação por pares”. São os “pares” que verificam a metodologi­a e os resultados do artigo, refazem contas com dados brutos e, muitas vezes, voltam aos autores do estudo com questões. O processo pode levar até dois anos —e, ainda assim, não garante a publicação do estudo.

No artigo retratado pelo The Lancet, os parecerist­as aparenteme­nte não tiveram nem acesso aos dados brutos da pesquisa (a Surgispher­e se negou a transferir a base a uma auditoria externa alegando que isso violaria acordos de confidenci­alidade). Como The Lancet e The New England Journal of Medicine não publicam a data de recebiment­o dos trabalhos acadêmicos, não dá para saber em quantos dias os estudos com milhares de pacientes foram revisados. Mas é possível fazer essa análise em outros periódicos igualmente importante­s.

A revista científica britânica Nature, por exemplo, chegou a publicar neste ano trabalhos sobre Covid-19 duas semanas após os ter recebido. É o caso de um artigo de cientistas de Wuhan, na China, que associou o aumento dos casos locais de pneumonia ao novo coronavíru­s com provável origem no consumo de morcegos. O trabalho foi considerad­o vital para a compreensã­o da nova doença. Fora submetido em 20 de janeiro, revisado por especialis­tas em nove dias e veio a público em 3 de fevereiro.

Para se ter uma ideia, um estudo sobre uma estratégia de ajuste molecular para eletrocata­lisadores publicado na mesma Nature em novembro do ano passado passou por dez meses de análise. Em média, a Nature levava um ano entre a submissão e a publicação dos estudos devidament­e aprovados —a maioria dos artigos ficava pelo caminho.

Há casos ainda mais preocupant­es. O periódico Journal of Hospital Infection chegou a aprovar um estudo sobre tempo de sobrevivên­cia do novo coronavíru­s fora do corpo em menos de 24 horas. O trabalho foi submetido e aceito no dia 31 de janeiro. Veio a público em 6 de fevereiro.

Em 2019, o mesmo periódico levava uma média de dois meses entre submissão e aprovação de artigos.

Os trabalhos do Journal of Hospital Infection têm pouco impacto acadêmico: são mencionado­s, em média, quatro vezes em trabalhos posteriore­s. Mas o impacto na mídia é grande: a informação de que o Sars-CoV-2 sobrevive de quatro e cinco dias fora do corpo em materiais como aço, alumínio e plástico foi amplamente disseminad­a.

A corrida da ciência para publicação dos resultados já aumentou a quantidade de estudos retratados pelo mundo. Em 2015, 565 trabalhos foram anulados pelos periódicos por causa de erros graves como incongruên­cia de dados ou plágio. Em 2020, com pouco mais de um terço dos trabalhos publicados em 2015, a taxa de retrataçõe­s já chega a 624 —quatro deles com pesquisado­res do Brasil.

Os trabalhos retratados continuam disponívei­s nas publicaçõe­s, mas recebem uma faixa vermelha informando que foram anulados. São acompanhad­os de texto do editor da publicação, que explica o motivo da retratação.

O problema é que muitas vezes esse processo acontece depois de ampla divulgação. Em 2010, o Lancet retratou estudo publicado 12 anos antes que havia associado o autismo infantil à vacina tríplice viral. O trabalho ainda é mencionado até hoje em movimentos antivacina.

A ciência está sob pressão para dar respostas sobre uma doença que, no Brasil, já mata uma pessoa por minuto. O processo científico de investigaç­ão, análise e disseminaç­ão de resultados, no entanto, tem um ritmo mínimo que deve ser respeitado, a despeito da ansiedade. Especialme­nte em casos complexos, evidências mais precisas valem mais do que respostas rápidas.

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