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Ciência mundial nunca produziu tanto e tão rapidamente, e pressa por resultados sobre Covid-19 eleva riscos de erros
são paulo A anulação de dois estudos, um deles sobre o uso de cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com Covid-19, em duas das principais revistas científicas acendeu um alerta sobre a disseminação dos resultados de pesquisa sobre o novo coronavírus.
A ciência mundial nunca produziu tanto e tão rapidamente: a cada hora, sete novos estudos sobre coronavírus são publicados. O problema é que o número de trabalhos científicos anulados após disseminação também cresceu, o que tem preocupado a comunidade acadêmica.
Os trabalhos anulados, publicados na inglesa Lancet e na americana The New England Journal of Medicine, usaram como base dados de pessoas internadas com Covid-19 fornecidos pela empresa Surgisphere. Como os autores não puderam verificar a autenticidade dos dados, os estudos foram anulados.
Na prática, todo resultado apresentado por cientistas deve passar por revisão de especialistas da mesma área do conhecimento —o que leva o nome de “avaliação por pares”. São os “pares” que verificam a metodologia e os resultados do artigo, refazem contas com dados brutos e, muitas vezes, voltam aos autores do estudo com questões. O processo pode levar até dois anos —e, ainda assim, não garante a publicação do estudo.
No artigo retratado pelo The Lancet, os pareceristas aparentemente não tiveram nem acesso aos dados brutos da pesquisa (a Surgisphere se negou a transferir a base a uma auditoria externa alegando que isso violaria acordos de confidencialidade). Como The Lancet e The New England Journal of Medicine não publicam a data de recebimento dos trabalhos acadêmicos, não dá para saber em quantos dias os estudos com milhares de pacientes foram revisados. Mas é possível fazer essa análise em outros periódicos igualmente importantes.
A revista científica britânica Nature, por exemplo, chegou a publicar neste ano trabalhos sobre Covid-19 duas semanas após os ter recebido. É o caso de um artigo de cientistas de Wuhan, na China, que associou o aumento dos casos locais de pneumonia ao novo coronavírus com provável origem no consumo de morcegos. O trabalho foi considerado vital para a compreensão da nova doença. Fora submetido em 20 de janeiro, revisado por especialistas em nove dias e veio a público em 3 de fevereiro.
Para se ter uma ideia, um estudo sobre uma estratégia de ajuste molecular para eletrocatalisadores publicado na mesma Nature em novembro do ano passado passou por dez meses de análise. Em média, a Nature levava um ano entre a submissão e a publicação dos estudos devidamente aprovados —a maioria dos artigos ficava pelo caminho.
Há casos ainda mais preocupantes. O periódico Journal of Hospital Infection chegou a aprovar um estudo sobre tempo de sobrevivência do novo coronavírus fora do corpo em menos de 24 horas. O trabalho foi submetido e aceito no dia 31 de janeiro. Veio a público em 6 de fevereiro.
Em 2019, o mesmo periódico levava uma média de dois meses entre submissão e aprovação de artigos.
Os trabalhos do Journal of Hospital Infection têm pouco impacto acadêmico: são mencionados, em média, quatro vezes em trabalhos posteriores. Mas o impacto na mídia é grande: a informação de que o Sars-CoV-2 sobrevive de quatro e cinco dias fora do corpo em materiais como aço, alumínio e plástico foi amplamente disseminada.
A corrida da ciência para publicação dos resultados já aumentou a quantidade de estudos retratados pelo mundo. Em 2015, 565 trabalhos foram anulados pelos periódicos por causa de erros graves como incongruência de dados ou plágio. Em 2020, com pouco mais de um terço dos trabalhos publicados em 2015, a taxa de retratações já chega a 624 —quatro deles com pesquisadores do Brasil.
Os trabalhos retratados continuam disponíveis nas publicações, mas recebem uma faixa vermelha informando que foram anulados. São acompanhados de texto do editor da publicação, que explica o motivo da retratação.
O problema é que muitas vezes esse processo acontece depois de ampla divulgação. Em 2010, o Lancet retratou estudo publicado 12 anos antes que havia associado o autismo infantil à vacina tríplice viral. O trabalho ainda é mencionado até hoje em movimentos antivacina.
A ciência está sob pressão para dar respostas sobre uma doença que, no Brasil, já mata uma pessoa por minuto. O processo científico de investigação, análise e disseminação de resultados, no entanto, tem um ritmo mínimo que deve ser respeitado, a despeito da ansiedade. Especialmente em casos complexos, evidências mais precisas valem mais do que respostas rápidas.