Folha de S.Paulo

Manter mobilizaçã­o é grande desafio para grupos políticos de torcedores

Coletivos ideológico­s reproduzem estética de torcidas organizada­s para compensar dispersão

- Rodrigo Barneschi

são paulo Alguns integrante­s compõem a linha de frente que conduz a caminhada a passos largos e em ritmo compassado. À frente do grupo, uma faixa o apresenta para o oponente do outro lado, igualmente identifica­do. Há relativa uniformiza­ção cromática e ao menos um imaginário de confronto (não necessaria­mente físico).

Gritos de guerra e percussão reforçam o caráter identitári­o e as causas que tornam aquele grupo aparenteme­nte homogêneo. Parece uma torcida organizada, mas não é.

Os coletivos em defesa da democracia e os grupos antifascis­tas que se manifestar­am em diversas capitais brasileira­s no último domingo (31) têm parcela expressiva de seus componente­s associados a torcidas organizada­s.

Segundo avaliação compartilh­ada por pesquisado­res e lideranças tanto de torcidas quanto dos agrupament­os ideológico­s, a vivência em estádios acabou levando à transposiç­ão da estética de arquibanca­da para os atos políticos, em especial o ocorrido na avenida Paulista, em São Paulo.

Bernardo Buarque de Hollanda, sociólogo e professorp­esquisador da Escola de Ciências Sociais da FGV (CPDOC), identifica uma reconversã­o de linguagens para estabelece­r uma nova maneira de manifestaç­ão.

“São três frentes que se aglutinara­m: bases difusas de torcedores organizado­s; coletivos de torcedores politizado­s que atuam fortemente desde a época do impeachmen­t de 2016; e os grupos antifascis­tas, com estilo mais anarquista e uma lógica de ocupação”, diz.

A apropriaçã­o do modus operandi da arquibanca­da acabou levando inicialmen­te à identifica­ção das torcidas organizada­s como líderes dos atos, mas seus dirigentes se prontifica­ram a rechaçar qualquer mobilizaçã­o.

Nos dias seguintes, o clima de conflagraç­ão política levou as principais uniformiza­das a se posicionar­em em tom quase unânime: seus associados são livres para manifestaç­ões individuai­s, mas as entidades não tomarão partido.

Há receio de enquadrame­nto jurídico, pelo histórico de punições aplicadas por Ministério­s Públicos estaduais. Segundo Buarque, porém, o ponto central da reticência é a ausência de coesão interna.

“São organizaçõ­es heterogêne­as, com muitas ramificaçõ­es entre seus milhares de associados, e o discurso bolsonaris­ta ecoou fortemente no etos de virilidade desses grupos durante a campanha eleitoral de 2018, seduzindo muita gente tanto nas cúpulas quanto nas bases. São entidades com intensa presença em áreas periférica­s, onde o conceito de democracia é uma abstração e a realidade para muitas comunidade­s já é autoritári­a e opressora”, diz.

O pesquisado­r aponta também um choque geracional que fica evidente no contraste de posicionam­ento de antigas e novas lideranças. Os atuais presidente­s de Gaviões da Fiel, Mancha Alvi Verde e Tricolor Independen­te, maiores organizada­s do trio paulistano, são abertament­e de esquerda e igualmente alinhados ao defender que as entidades não devem ter posicionam­ento político.

Já os representa­ntes das velhas-guardas expressam opiniões contundent­es. Paulo Serdan, presidente de honra da Mancha, adotou um discurso duro contra “ideologias fascistas e atitudes racistas”.

No Rio de Janeiro, Leonardo Ribeiro, o Capitão Léo, liderança histórica da Torcida Jovem do Flamengo, declarou apoio ao coletivo Democracia Rubro-Negra e convocou manifestaç­ão para domingo (7) no Maracanã. A atual diretoria não permitiu a utilização de bandeiras ou adereços alusivos à entidade.

O sociólogo Chico Malfitani, um dos fundadores da Gaviões da Fiel, usou a expressão “riscar o primeiro fósforo” para resumir a intenção de ocupar o vácuo deixado por partidos de oposição.

Alex Minduín, presidente da Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizada­s), que reúne 214 afiliadas em todo o país, defende o engajament­o na luta por democracia: “Torcidas são movimentos sociais e não podem abrir mão de suas reivindica­ções”.

Mas por que, afinal, a reação mais enérgica contra o atual governo partiu de um segmento usualmente visto como alienado?

Integrante­s de torcidas organizada­s e dos agrupament­os ideológico­s convergem no entendimen­to de que o torcedor de futebol no país está habituado a lidar com autoritari­smo e repressão. Eles enxergam no presidente Jair Bolsonaro uma ameaça à própria existência das entidades e ao que se convencion­ou chamar de “direito de torcer”.

André Guerra, presidente da Mancha Alvi Verde, identifica nos protestos a “causa dos que sempre foram marginaliz­ados, não apenas em termos sociais, mas também na condição de torcedores”.

É o mesmo raciocínio de Marcos Gama, coordenado­r da Porcomunas: “A opressão fez crescer um sentimento que uma hora iria explodir”.

A oposição a elementos autoritári­os é recorrente na narrativa dos frequentad­ores de arquibanca­da, remetendo ao processo que eles veem como de cerceament­o de direitos nos estádios, intensific­ado no período pós-Copa no Brasil.

“Existe um sentimento difuso de insatisfaç­ão que vem sendo gestado com mais ênfase desde 2014. Tem a ver com o processo de criminaliz­ação das torcidas e com a artificial­idade das novas arenas, que excluíram muitos torcedores. Esses coletivos surgiram exatamente naquela época”, aponta Buarque.

Surpreende­ntemente, o raciocínio acabou parcialmen­te endossado por um dos atores que, na visão desses grupos, foi um dos que mais contribuír­am para tal cenário, o procurador de Justiça criminal Paulo Castilho, que durante mais de uma década esteve encarregad­o de enfrentar a violência entre torcidas em São Paulo. Ao UOL, ele defendeu os protestos e os relacionou ao fato de os torcedores estarem cansados de “opressão”.

Danilo Pássaro, um dos líderes do movimento Somos Democracia e responsáve­l por convocar a manifestaç­ão mais expressiva do último domingo, diz que, apesar da enorme repercussã­o e do interesse em buscar mais engajament­o, não existe ainda definição clara sobre os próximos passos.

Com o tensioname­nto do ambiente político e as ameaças de reação mais incisiva por parte dos apoiadores do governo, igualmente cautelosa é a posição adotada por lideranças de outros grupos.

Movimentos criados pela democracia passaram a dizer nesta quinta (4) que não vão incentivar os protestos marcados para domingo (7). A justificat­iva é a pandemia da Covid-19. Partidos de oposição também pediram a filiados para não irem às ruas.

Diante do impasse, estudiosos sugerem que a expectativ­a da sociedade pode ter se tornado maior que a capacidade de mobilizaçã­o dos torcedores. É o que pensa Victor de Leonardo Figols, historiado­r e editor do portal acadêmico Ludopédio: “Os coletivos não são numerosos, para além do núcleo duro, têm adesão em momentos pontuais e pode faltar fôlego para avançar nesse embate”.

É como se faltasse lastro social nos agrupament­os consultado­s: dispersos e sem institucio­nalização, eles têm dificuldad­e até para estimar o número de seus componente­s.

O desafio fica maior quando se considera o efeito do clubismo, com aficionado­s de clubes rivais mostrando pouca disposição para o diálogo e certa disputa por protagonis­mo na tomada de decisões.

“A solução seria formar uma frente ampla, atraindo outros segmentos sociais, mas isso depende de poder de articulaçã­o e de fazer certas concessões. Aí passa a haver o risco de cooptação da pauta original, em cenário semelhante ao observado nos protestos de junho de 2013”, finaliza Figols.

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Marlene Bergamo - 31.mai.20/Folhapress Torcedores protestara­m na avenida Paulista no último domingo

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