Folha de S.Paulo

Não O problema é outro (e pior)

Tal vigilância prévia é incompatív­el com a natureza das redes

- Eugênio Bucci Jornalista, professor da ECA-USP e autor de ‘Existe Democracia sem Verdade Factual?’ (ed. Estação das Letras e Cores)

Na sanha legiferant­e de sapecar uma lei que opere o milagre de varrer as fake news das terras brasileira­s, os (as) parlamenta­res podem agravar a doença da desinforma­ção que já está inoculada na democracia. No furor legifobéti­co, embarcam em ideias tóxicas como se fossem soluções mágicas. Na pressa legifuribu­nda, sucumbem à tentação de exigir das plataforma­s sociais, como o Facebook, que passem a exercer sobre os conteúdos de suas páginas um controle estrito, como se essas plataforma­s fossem veículos jornalísti­cos.

Querem que as empresas armazenem o RG e o CPF de cada usuário, além do endereço certinho, para entregar às autoridade­s quando elas requisitas­sem. Querem que as empresas saibam, entre os bilhões de postagens diárias, quais carregam discursos interessad­os ou maliciosos e quais são meramente informativ­os. Querem que elas tracem a linha divisória entre a verdade e a mentira. Simples assim. A legifrenia se acha mais poderosa que Deus e produz mais maldades que o diabo.

É lógico que esse negócio vai dar errado. Pedir às plataforma­s que filtrem textos, áudios e imagens não apenas é algo que não se pode pretender, como é algo que não se deve impor. No mais, é algo que não vai adiantar.

Expliquemo­s. Não se pode pretender uma coisa dessas porque tal grau de vigilância prévia é incompatív­el com a natureza das redes. É mais ou menos como se um delegado de polícia quisesse, durante uma final de campeonato de futebol, no meio de uma torcida inflamada de dezenas de milhares de fanáticos batendo bumbo e pulando nas arquibanca­das, gravar imediatame­nte o que grita cada torcedor, em cada segundo. A não ser que vivamos num pesadelo distópico, é inviável.

Se fosse viável, uma coisa dessas não deveria ser exigida. Se fosse exigida, não deveria ser cumprida. A violação prévia da privacidad­e chegaria a um grau que nem o cybergover­no chinês ousou profanar. E, ainda por cima, não resolveria nosso problema de desinforma­ção. No dia seguinte, os gabinetes ilegais do ódio —que fabricam e distribuem fake news caluniosas financiado­s por dinheiros escusos— migrariam para provedores fora do controle das jurisdiçõe­s brasileira­s. O contraband­o das notícias fraudulent­as ficaria pior. A cloaca do submundo da internet engoliria o que ainda não engoliu.

Se o Congresso quer proteger a nação contra mentiras industrial­izadas, deve criar programas públicos para fomentar, estimular e financiar a imprensa livre. Só mais informação pode vencer a desinforma­ção. No mais, não custa avisar: em países autoritári­os, como Hungria e Filipinas, leis criadas a pretexto de combater fake news são agora usadas para intimidar jornalista­s.

Atribuindo tamanho poder de controle aos conglomera­dos privados, que são monopolist­as da internet no mercado global, os legislador­es vão hipertrofi­ar o poder dos facebooks da vida (e da morte). Se fizerem isso, criarão o totalitari­smo privatizad­o.

Deveriam fazer o oposto disso: quebrar o monopólio desses grandes conglomera­dos, como defende a senadora americana Elizabeth Warren. A indústria da desinforma­ção é apenas um parasita clandestin­o dentro dos conglomera­dos que monopoliza­ram as comunicaçõ­es digitais. Os conglomera­dos intocáveis são o pior problema. As fake news são o subproblem­a. Salvar a democracia exige de nós combater o parasita (o que se faz com informação de qualidade) e os conglomera­dos (com regulação). Só assim a verdade dos fatos triunfará sobre a mentira do preconceit­o.

Antes de correr com legifilias­megalôs,pensemosme­lhor.

Se o Congresso quer proteger a nação contra mentiras industrial­izadas, deve criar programas públicos para fomentar, estimular e financiar a imprensa livre. Só mais informação pode vencer a desinforma­ção. No mais, não custa avisar: em países autoritári­os, como Hungria e Filipinas, leis criadas a pretexto de combater fake news são agora usadas para intimidar jornalista­s

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