‘Quem fizer oposição terá construída a imagem de terrorista’, diz delegado
Cofundador do Movimento dos Policiais Antifascistas, Orlando Zaccone cita perseguição e vê avanço de projeto de intolerância
são paulo O Brasil vive a institucionalização de um projeto fascista. Ele envolve não só o avanço no país de milícias e grupos paramilitares mas também a transformação em política de Estado de mecanismos de repressão violenta, racismo, LGBTfobia, misoginia, exploração do trabalho e criminalização de movimentos sociais.
É assim que o delegado da Polícia Civil Orlando Zaccone, 56, um dos fundadores do Movimento dos Policiais Antifascismo —organização criada por policiais do Rio e da Bahia em 2017 e depois prolongada para outros estados—, entende a nova arquitetura política que vê sendo construída no Brasil hoje. Segundo ele, sua função é reprimir qualquer tipo de oposição.
Exemplos recentes seriam declarações do presidente Jair
Bolsonaro (sem partido) de que são “marginais” e “terroristas” os manifestantes antifascistas que tomaram as ruas de algumas cidades do país na última semana de maio. E o projeto de lei apresentado à Câmara por deputados governistas que propõe tipificar esses grupos como terroristas.
“Manifestantes que defenderam o AI-5 e atacaram o Congresso e o Supremo Tribunal Federal não foram considerados como terroristas, mas como livre pensamento”, pontua Zaccone, que é membro da Leap, organização que reúne policiais, promotores e juízes na busca de alternativas à guerra às drogas.
“Quem estiver nas ruas defendendo a pauta do governo, mesmo armado ou com um taco de beisebol, vai ser tratado com respeito. Quem estiver nas ruas fazendo oposição, vai ser construído como terrorista. E a gente chama isso de fascismo não é à toa.”
Zaccone e outros 500 agentes de segurança pública, entre policiais civis, militares e federais, bombeiros, agentes penitenciários e guardas municipais, subscreveram um manifesto do Movimento dos Policiais Antifascismo lançado nesta sexta-feira (5).
O texto denuncia perseguições a policiais antifascistas no Rio Grande do Norte e no Rio Grande do Sul e urge pela criação de uma Frente Única Antifascismo com partidos, artistas e movimentos de classe e da sociedade civil.
“Não é a toa que Bolsonaro quer se apropriar da Polícia Federal e que ele indicou o procurador-geral da República fora da lista tríplice”, avalia. “Ele está dominando a estrutura institucional para operar uma perseguição política. E isso talvez seja tão grave e pouco perceptível quanto milícias e grupos paramilitares.”
Para Zaccone, que foi o responsável pela investigação do caso da morte do pedreiro Amarildo em 2013 na Rocinha e já foi filiado ao PSOL, os policiais estão cada vez mais conscientes de que estão numa posição ruim no atual modelo. Os crescentes índices de suicídio entre membros das corporações seriam apenas o sintoma mais visível.
“Os policiais militares, por exemplo, não têm direito a sindicalização, greve, filiação partidária ou livre manifestação do pensamento. São, neste sentido, subcidadãos”, afirma. “Como esperar que alguém que teve direitos fundamentais retirados respeite e proteja os direitos de cidadania dos outros?”
De acordo com o delegado, o Movimento dos Policiais Antifascismo pretende construir a identidade do policial como trabalhador, “interessado em prestar um serviço à população e não a quem está no comando das polícias”.
Como avalia a fala do presidente de que antifascistas são “terroristas” e o projeto de lei apresentado que pretende enquadrá-los desta maneira?
O fascismo quer impor seu projeto político sem ter de enfrentar oposição. A desqualificação de oponentes é sua estratégia, e o gabinete do ódio é o maior exemplo disso. Agora que grupos antifas vão para as ruas dizer que não aceitam a imposição de certo modelo econômico e da intolerância às diferenças, o governo fica acuado no seu projeto.
A jogada é essa: quem estiver nas ruas defendendo a pauta do governo, mesmo armado ou com um taco de beisebol, vai ser tratado com respeito. Quem estiver nas ruas fazendo oposição, vai ser construído como terrorista. E a gente chama isso de fascismo não é à toa.
Qual é o papel da polícia nesta dinâmica?
A polícia infelizmente foi cooptada pelo discurso fascista, que diz que os policiais são mal recebidos pela esquerda e pelos movimentos sociais. O discurso é: “Eles não gostam da polícia, mas nós gostamos. Policiais são nossos heróis”.
Com esse discurso, se entrega uma carta branca à polícia. E isso vai se refletir não apenas na forma como policiais vão reprimir o exercício de direitos políticos nas ruas, mas principalmente no avanço daquilo que a polícia tem de pior: as arrecadações ilícitas e o domínio territorial perpetrados pelas milícias.
Por isso o crescimento do fascismo no Brasil é concomitante ao crescimento das milícias. E não por menos existe uma relação estreita, em especial no Rio de Janeiro, entre milícias e o poder político que chamamos de fascismo.
Como explicar a diferença no comportamento das polícias
nas manifestações à direita e
à esquerda? Existem dois estereótipos de quem é o policial no ambiente social. Um, construído à esquerda, é o da banda podre, corrupta e violenta. Ao ponto de grupos antifascistas usaram o slogan “all cops are bastards” (todos os policiais são bastardos). Esse ódio afasta o reconhecimento do policial como trabalhador para que ele possa se juntar à luta de seus pares. Como essa aliança é rompida, a direita se aproveita e cria uma fantasia mítica, heróica, que consegue cooptar os policiais.
Hoje, o poder político federal dialoga de perto com as forças policiais, que ganharam muito espaço no governo Bolsonaro. Isso repercute na instituição ao ponto de seus membros enxergarem quem está contra o governo como inimigo.
Existe receio de que as manifestações contra o governo marcadas para este domingo (7) sejam alvo da ação de pessoas infiltradas.
Infiltrados fazem parte da história. Eles vão lá promover desordem para legitimar a ação direta e violenta da polícia. As lideranças dessas manifestações terão de se organizar para tentar impedir o sucesso deste tipo de ação.
Mas a violência não decorre apenas de elementos infiltrados, mas também de alguns manifestantes. E precisamos melhorar a leitura deste fenômeno.
Diante da revolta causada pela morte de George Floyd nos EUA, um mesmo telejornal brasileiro chama de manifestante quem está colocando fogo nas delegacias americanas enquanto chama de vândalos os brasileiros que entraram em confronto com grupos de apoio ao governo e com a polícia.
A desqualificação de oponentes é sua estratégia [do fascismo], e o gabinete do ódio é o maior exemplo disso. Agora que grupos antifas vão para as ruas dizer que não aceitam a imposição de certo modelo econômico e da intolerância às diferenças, o governo fica acuado no seu projeto
A infelizmente polícia foi cooptada pelo discurso fascista, que diz que os policiais são mal recebidos pela esquerda e pelos movimentos sociais. O discurso é: ‘Eles não gostam da polícia, mas nós gostamos. Policiais são nossos heróis’
Hoje, o poder político federal dialoga de perto com as forças policiais, que ganharam muito espaço no governo Bolsonaro. Isso repercute na instituição ao ponto de seus membros enxergarem quem está contra o governo como inimigo
Qual é o limite entre manifestação política e vandalismo?
Qual é o olhar que o Estado teve para um fotojornalista [Sérgio Silva] que ficou cego ao levar um tiro de bala de borracha da polícia durante uma manifestação em 2013? O Estado disse: quem está na chuva é pra se molhar. E por que isso não vale para a vidraça de um banco?
Não estou fazendo um discurso pela violência. Mas a vidraça do banco quebrada gera uma reação do aparato policial capaz de provocar algo muito pior, como a cegueira em quem está trabalhando no protesto.
A gente naturaliza os altos índices de letalidade da polícia, a gente naturaliza a morte de policiais, e, de repente, uma vidraça quebrada vira um grande escândalo da violência. Precisamos questionar isso.