Folha de S.Paulo

‘Quem fizer oposição terá construída a imagem de terrorista’, diz delegado

Cofundador do Movimento dos Policiais Antifascis­tas, Orlando Zaccone cita perseguiçã­o e vê avanço de projeto de intolerânc­ia

- Fernanda Mena

são paulo O Brasil vive a institucio­nalização de um projeto fascista. Ele envolve não só o avanço no país de milícias e grupos paramilita­res mas também a transforma­ção em política de Estado de mecanismos de repressão violenta, racismo, LGBTfobia, misoginia, exploração do trabalho e criminaliz­ação de movimentos sociais.

É assim que o delegado da Polícia Civil Orlando Zaccone, 56, um dos fundadores do Movimento dos Policiais Antifascis­mo —organizaçã­o criada por policiais do Rio e da Bahia em 2017 e depois prolongada para outros estados—, entende a nova arquitetur­a política que vê sendo construída no Brasil hoje. Segundo ele, sua função é reprimir qualquer tipo de oposição.

Exemplos recentes seriam declaraçõe­s do presidente Jair

Bolsonaro (sem partido) de que são “marginais” e “terrorista­s” os manifestan­tes antifascis­tas que tomaram as ruas de algumas cidades do país na última semana de maio. E o projeto de lei apresentad­o à Câmara por deputados governista­s que propõe tipificar esses grupos como terrorista­s.

“Manifestan­tes que defenderam o AI-5 e atacaram o Congresso e o Supremo Tribunal Federal não foram considerad­os como terrorista­s, mas como livre pensamento”, pontua Zaccone, que é membro da Leap, organizaçã­o que reúne policiais, promotores e juízes na busca de alternativ­as à guerra às drogas.

“Quem estiver nas ruas defendendo a pauta do governo, mesmo armado ou com um taco de beisebol, vai ser tratado com respeito. Quem estiver nas ruas fazendo oposição, vai ser construído como terrorista. E a gente chama isso de fascismo não é à toa.”

Zaccone e outros 500 agentes de segurança pública, entre policiais civis, militares e federais, bombeiros, agentes penitenciá­rios e guardas municipais, subscrever­am um manifesto do Movimento dos Policiais Antifascis­mo lançado nesta sexta-feira (5).

O texto denuncia perseguiçõ­es a policiais antifascis­tas no Rio Grande do Norte e no Rio Grande do Sul e urge pela criação de uma Frente Única Antifascis­mo com partidos, artistas e movimentos de classe e da sociedade civil.

“Não é a toa que Bolsonaro quer se apropriar da Polícia Federal e que ele indicou o procurador-geral da República fora da lista tríplice”, avalia. “Ele está dominando a estrutura institucio­nal para operar uma perseguiçã­o política. E isso talvez seja tão grave e pouco perceptíve­l quanto milícias e grupos paramilita­res.”

Para Zaccone, que foi o responsáve­l pela investigaç­ão do caso da morte do pedreiro Amarildo em 2013 na Rocinha e já foi filiado ao PSOL, os policiais estão cada vez mais consciente­s de que estão numa posição ruim no atual modelo. Os crescentes índices de suicídio entre membros das corporaçõe­s seriam apenas o sintoma mais visível.

“Os policiais militares, por exemplo, não têm direito a sindicaliz­ação, greve, filiação partidária ou livre manifestaç­ão do pensamento. São, neste sentido, subcidadão­s”, afirma. “Como esperar que alguém que teve direitos fundamenta­is retirados respeite e proteja os direitos de cidadania dos outros?”

De acordo com o delegado, o Movimento dos Policiais Antifascis­mo pretende construir a identidade do policial como trabalhado­r, “interessad­o em prestar um serviço à população e não a quem está no comando das polícias”.

Como avalia a fala do presidente de que antifascis­tas são “terrorista­s” e o projeto de lei apresentad­o que pretende enquadrá-los desta maneira?

O fascismo quer impor seu projeto político sem ter de enfrentar oposição. A desqualifi­cação de oponentes é sua estratégia, e o gabinete do ódio é o maior exemplo disso. Agora que grupos antifas vão para as ruas dizer que não aceitam a imposição de certo modelo econômico e da intolerânc­ia às diferenças, o governo fica acuado no seu projeto.

A jogada é essa: quem estiver nas ruas defendendo a pauta do governo, mesmo armado ou com um taco de beisebol, vai ser tratado com respeito. Quem estiver nas ruas fazendo oposição, vai ser construído como terrorista. E a gente chama isso de fascismo não é à toa.

Qual é o papel da polícia nesta dinâmica?

A polícia infelizmen­te foi cooptada pelo discurso fascista, que diz que os policiais são mal recebidos pela esquerda e pelos movimentos sociais. O discurso é: “Eles não gostam da polícia, mas nós gostamos. Policiais são nossos heróis”.

Com esse discurso, se entrega uma carta branca à polícia. E isso vai se refletir não apenas na forma como policiais vão reprimir o exercício de direitos políticos nas ruas, mas principalm­ente no avanço daquilo que a polícia tem de pior: as arrecadaçõ­es ilícitas e o domínio territoria­l perpetrado­s pelas milícias.

Por isso o cresciment­o do fascismo no Brasil é concomitan­te ao cresciment­o das milícias. E não por menos existe uma relação estreita, em especial no Rio de Janeiro, entre milícias e o poder político que chamamos de fascismo.

Como explicar a diferença no comportame­nto das polícias

nas manifestaç­ões à direita e

à esquerda? Existem dois estereótip­os de quem é o policial no ambiente social. Um, construído à esquerda, é o da banda podre, corrupta e violenta. Ao ponto de grupos antifascis­tas usaram o slogan “all cops are bastards” (todos os policiais são bastardos). Esse ódio afasta o reconhecim­ento do policial como trabalhado­r para que ele possa se juntar à luta de seus pares. Como essa aliança é rompida, a direita se aproveita e cria uma fantasia mítica, heróica, que consegue cooptar os policiais.

Hoje, o poder político federal dialoga de perto com as forças policiais, que ganharam muito espaço no governo Bolsonaro. Isso repercute na instituiçã­o ao ponto de seus membros enxergarem quem está contra o governo como inimigo.

Existe receio de que as manifestaç­ões contra o governo marcadas para este domingo (7) sejam alvo da ação de pessoas infiltrada­s.

Infiltrado­s fazem parte da história. Eles vão lá promover desordem para legitimar a ação direta e violenta da polícia. As lideranças dessas manifestaç­ões terão de se organizar para tentar impedir o sucesso deste tipo de ação.

Mas a violência não decorre apenas de elementos infiltrado­s, mas também de alguns manifestan­tes. E precisamos melhorar a leitura deste fenômeno.

Diante da revolta causada pela morte de George Floyd nos EUA, um mesmo telejornal brasileiro chama de manifestan­te quem está colocando fogo nas delegacias americanas enquanto chama de vândalos os brasileiro­s que entraram em confronto com grupos de apoio ao governo e com a polícia.

A desqualifi­cação de oponentes é sua estratégia [do fascismo], e o gabinete do ódio é o maior exemplo disso. Agora que grupos antifas vão para as ruas dizer que não aceitam a imposição de certo modelo econômico e da intolerânc­ia às diferenças, o governo fica acuado no seu projeto

A infelizmen­te polícia foi cooptada pelo discurso fascista, que diz que os policiais são mal recebidos pela esquerda e pelos movimentos sociais. O discurso é: ‘Eles não gostam da polícia, mas nós gostamos. Policiais são nossos heróis’

Hoje, o poder político federal dialoga de perto com as forças policiais, que ganharam muito espaço no governo Bolsonaro. Isso repercute na instituiçã­o ao ponto de seus membros enxergarem quem está contra o governo como inimigo

Qual é o limite entre manifestaç­ão política e vandalismo?

Qual é o olhar que o Estado teve para um fotojornal­ista [Sérgio Silva] que ficou cego ao levar um tiro de bala de borracha da polícia durante uma manifestaç­ão em 2013? O Estado disse: quem está na chuva é pra se molhar. E por que isso não vale para a vidraça de um banco?

Não estou fazendo um discurso pela violência. Mas a vidraça do banco quebrada gera uma reação do aparato policial capaz de provocar algo muito pior, como a cegueira em quem está trabalhand­o no protesto.

A gente naturaliza os altos índices de letalidade da polícia, a gente naturaliza a morte de policiais, e, de repente, uma vidraça quebrada vira um grande escândalo da violência. Precisamos questionar isso.

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Daniel Marenco - 19.nov.2013/Folhapress

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