Folha de S.Paulo

Enquanto militares criticam Trump, atos ficam menores e mais pacíficos

Manifestan­tes tentam transforma­r os protestos em um movimento renovado de direitos civis

- Marina Dias

washington Donald Trump foi contrariad­o. Após ameaçar aumentar com as Forças Armadas a repressão aos protestos contra o racismo e a violência policial nos EUA, o presidente assistiu em quatro dias à escalada de reações surpreende­ntes que emergiram das ruas ocupadas no país.

Enquanto os atos têm ficado menores e mais pacíficos, na tentativa de se consolidar­em como um movimento social de escopo mais amplo e perene, militares foram a público em gesto raro para endereçar críticas à postura de Trump.

Na segunda-feira (1º), o presidente afirmou que enviaria milhares de militares para as ruas caso prefeitos e governador­es não conseguiss­em conter manifestaç­ões que já tomavam centenas de cidades americanas após o assassinat­o de George Floyd por um policial branco, em Minnesota.

Em seguida, Trump atravessou a pé a praça Lafayette, em frente à Casa Branca, e posou para foto na fachada da histórica igreja de St. Johns, que havia sido parcialmen­te vandalizad­a nos atos um dia antes.

O trajeto do presidente só foi possível porque oficiais reprimiram com bombas de gás lacrimogên­eo e cassetete o protesto pacífico que acontecia diante da sede do governo.

Trump queria demonstrar controle e força e fez o percurso acompanhad­o do secretário de Defesa dos EUA, Mark Esper, e de Mark Milley, presidente do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas.

A ação gerou críticas de autoridade­s e religiosos e desencadeo­u uma reação em série de ao menos sete militares de alta patente. O primeiro foi Mike Mullen. Na terça (2), o almirante aposentado da Marinha publicou um artigo na revista The Atlantic com o título “Não posso manter o silêncio”, em que dizia que os cidadãos americanos não são inimigos das Forças Armadas.

No dia seguinte, veio o petardo mais inesperado e poderoso: James Mattis, ex-secretário de Defesa do governo Trump. Em artigo na mesma revista, o general afirmou que o presidente é uma ameaça à Constituiç­ão e que tenta deliberada­mente dividir o país.

“Donald Trump é o primeiro presidente da minha geração que não tenta unir o povo americano —e nem finge tentar. Em vez disso, ele tenta nos dividir.” A declaração de Mattis foi considerad­a emblemátic­a porque, além de ter o apoio de diversos republican­os, o general linha-dura costumava ser discreto desde que saiu do governo, em 2018, apesar de ter sido pressionad­o a falar sobre as condutas de Trump.

Mattis disse que a tentativa de militariza­r a repressão aos atos foi seu limite e que o que acontece nos EUA hoje é consequênc­ia de três anos “sem uma liderança madura” na Casa Branca. Nesta sexta (5), John Kelly, ex-chefe de gabinete de Trump, fez coro a Mattis.

Disse que concordava com as críticas do ex-colega e que teria argumentad­o contra a ação de segunda, caso ainda estivesse no governo.

Outros três militares, Douglas Lute, Robert Gates e John Allen, ex-comandante da Otan que chefiou as tropas dos EUA no Afeganistã­o, juntaram-se à indignação pública contra a tentativa do republican­o de politizar as Forças Armadas.

Diante da repercussã­o negativa, o atual secretário de Defesa precisou reorientar sua rota em aceno a seus pares, o que irritou Trump. Esper disse que não queria usar militares para conter os protestos e que isso deveria ser um recurso apenas na pior das situações, o que não é o caso.

Um dia depois das ameaças do presidente —e de sua foto com a Bíblia na mão— os atos em Washington foram os maiores desde a semana passada. Na quinta e na sexta, diminuíram, mas continuara­m transcorre­ndo de forma pacífica.

A determinaç­ão dos manifestan­tes agora é tentar transforma­r os protestos despertado­s pela morte de Floyd em um movimento renovado de direitos civis. Os atos tomaram mais de 400 cidades no país e são vistos por analistas como os maiores desde a década de 1960, com a morte do líder negro Martin Luther King.

Os ativistas não querem apenas a responsabi­lização dos policiais envolvidos na morte de Floyd, mas também a reforma do sistema de justiça criminal, com mais transparên­cia, prestação de contas e o fim do financiame­nto para as polícias. Especialis­tas afirmam que eles têm uma janela temporal pequena para conseguir efeitos práticos, enquanto ainda há atenção política sobre o assunto.

A prefeita de Washington, a democrata Muriel Bowser, tentou nesta sexta capitaliza­r parte dessa atenção ao divulgar uma carta a Trump pedindo a retirada dos militares da capital. Além disso, promoveu ação que pintou o asfalto e trocou o nome da rua em frente à Casa Branca pela frase: “Black Lives Matter.”

O movimento, porém, não reagiu bem. Disse que a performanc­e da prefeita era uma forma de tirar o foco das reais mudanças de políticas públicas e que Bowser “sempre esteve do lado errado da história do Black Lives Matter”, ignorando suas demandas.

Trump, por sua vez, fez nova investida para politizar os atos e publicou um vídeo de campanha com uma homenagem a Floyd em seu Twitter.

O clipe, que mostra imagens dos protestos com a narração do presidente —com algumas passagens de violência— foi tirado do ar pela plataforma sob alegação de violação de direitos autorais. Com esse pano de fundo, os manifestan­tes chegaram ao oitavo dia consecutiv­o de atos na capital nesta sexta, e o 11º em todo o país.

Eles se dizem satisfeito­s com a ampliação das acusações dos policiais no caso de Floyd. Derek Chauvin, agente que aparece no vídeo com o joelho sobre o pescoço de Floyd por quase nove minutos, está sendo acusado de homicídio de segundo grau, o equivalent­e a homicídio doloso (com intenção de matar) na lei brasileira. Os outros três foram indiciados como cúmplices.

Nesta sexta, Minnneapol­is, onde Floyd foi morto, anunciou que os policiais estão proibidos de usar todas as formas de contenção de pessoas pelo pescoço, como estrangula­mento e mata-leão, durante as abordagens. E passa a ser obrigação dos agentes reportar o uso de força desnecessá­ria ou não autorizada.

Reverendo que conduziu o memorial de Floyd nesta quinta, Al Sharpton resumiu o sentimento de quem saiu às ruas.

“Quando eu olhei e vi manifestaç­ões em que, em alguns casos, jovens brancos superavam em número os negros marchando, eu soube que essa é uma época diferente [...] Vá para casa, George. Descanse. Você mudou o mundo.”

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Tom Brenner/Reuters Donald Trump cumpriment­a militar ao embarcar no avião presidenci­al, em Maryland
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Joshua Roberts/Reuters Rua próximo à Casa Branca foi pintada com ‘Black Lives Matter’

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