Folha de S.Paulo

Negros lutam para ligar ruas a urnas

Sem voto, a beleza dos slogans de protestos será novamente efêmera e inócua

- Roberto Simon Diretor sênior de Política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universida­de Harvard

O joelho fincado no pescoço que, em quase nove minutos, asfixiou até a morte George Floyd abriu também uma rachadura inédita no edifício americano.

Antes de Floyd, foram Trayvon Martin, Eric Garner, Michael Brown e tantos outros de pele negra. Mas, vivendo nos EUA, sente-se algo de realmente novo no ar —das multidões de máscaras, em mais de 40 cidades sob toque de recolher, às tropas ocupando as escadarias do Lincoln Memorial, perto da Casa Branca.

Não se via tamanho estado de emergência em 52 anos. O desemprego é o maior em nove décadas. A ameaça de Donald Trump de usar soldados contra a população viola um equilíbrio de 233 anos nas relações civis-militares. Discute-se o antes inimagináv­el na mais longeva democracia das Américas — se Trump aceitará derrota eleitoral, se o Pentágono recusará ordens para agir dentro dos EUA.

A cisão se alastra para além do governo, por grandes instituiçõ­es de toda sorte. Jornalista­s do New York Times se rebelaram contra um artigo do senador Tom Cotton demandando intervençã­o de soldados contra manifestan­tes. Funcionári­os do Facebook fizeram uma greve pedindo controles sobre posts de Trump. Estrelas da NFL e da NBA entraram em conflito sobre o gesto de se ajoelhar em protesto durante o hino nacional.

Em meio à incerteza e ao ineditismo do momento, lideranças negras dos EUA apontam um caminho claro —o qual deve ser ouvido com cuidado no Brasil.

Barack Obama quebrou o silêncio dos últimos tempos e insistiu que é preciso ligar dois pontos hoje distantes: desobediên­cia civil e participaç­ão política. “Temos de chamar a atenção a um problema e deixar as pessoas no poder desconfort­áveis, mas também temos de traduzir isso em soluções práticas e leis.”

Stacey Abrams, a democrata quequasele­vouogovern­odaGeórgia­ehojeécota­daparaserv­ice

de Joe Biden, reforçou a mensagem. Sob o luto e a violência dos últimos dias, convocar as pessoas a votar pode “parecer inadequado”, mas, sem voto, a beleza dos slogans nas ruas será — novamente— efêmera e inócua.

A prefeita de Atlanta, Keisha Lance Bottoms, escreveu sobre como é, ao mesmo tempo, comandar a polícia da cidade e viver com medo de que seu filho seja o próximo asfixiado por um policial. A solução, disse, é votar.

Para explicar como instituiçõ­es progridem, os economista­s Daron Acemoglu e James Robinson criaram o conceito de “critical juncture” (algo como “ponto crítico”): o momento em que um choque profundo abre uma janela de oportunida­de para transforma­r o sistema político e mudar radicalmen­te a trajetória de sociedades.

A Grande Depressão e a Segunda

Guerra, por exemplo, foram o ponto crítico que permitiu a emergência do estado de bem-estar social. O progresso, porém, depende de liderança e organizaçã­o política.

A mobilizaçã­o após a morte deFloyd—somadaàp andem ia,àdeb acle econômica eà destruição política promovida por Trump— abre uma janela de oportunida­de. O que será feito com ela dependerá totalmente das eleições de novembro.

Em certo sentido, o Brasil desde 2013, quando estouraram as m ani festações,éahis tóri ade um ponto crítico desperdiça­do —e uma tragédia ques e seguiu. O ativismo não se converteu em voto, mas em guerra contra o sistema político. No país do menino João Pedro Mattos, enquanto o antibolson­arismo tenta ir às ruas, o recado de Ob ama, Abram seBot to ms merece atenção especial.

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