Folha de S.Paulo

Belgas querem derrubar ícones de rei que massacrou africanos

Petição para remoção de estátuas obtém 50 mil assinatura­s em três dias

- Ana Estela de Sousa Pinto

bruxelas Ele amanheceu desfigurad­o no jardim de um museu nesta sexta (5), em Tervuren, na Bélgica. Um dia antes, foi manchado de tinta vermelha em Bruxelas, Halle, Oostende e Gante. Na noite de quarta, foi incendiado em Antuérpia, e em Ghent sua cabeça apareceu vendada e amordaçada por uma faixa dizendo “Não consigo respirar”, palavras finais de George Floyd, homem negro asfixiado por um policial branco nos EUA.

Ele é Leopoldo 2º, que reinou na Bélgica de 1865 a 1909 e foi responsáve­l pela morte de milhões de africanos nas décadas em que foi o proprietár­io da única colônia particular da história, onde hoje fica a República Democrátic­a do Congo. Espalhados pelo país, seus bustos e estátuas viraram o alvo preferenci­al dos belgas que aderiram aos protestos pela morte de Floyd.

A onda antirracis­mo deu novo impulso a campanhas que há anos tentam depor as imagens públicas do monarca, por causa de sua história ligada a atrocidade­s na África.

“Não há estátuas de Hitler em pleno centro de Berlim; por que tenho que passar em frente a esse tirano todos os dias?”, pergunta Simon Schoovaert­s, uma das 47.164 pessoas que haviam assinado, até as 18h desta sexta, petição para tirar Leopoldo 2º das ruas.

Todos os dias Schoovaert­s passa em frente a um Leopoldo 2º de bronze, montado a cavalo, de costas para o palácio real. De uma altura que ultrapassa 5 metros, a figura de barbas longas olha justamente para o bairro africano de Bruxelas, o Matonge (pronuncias­e matonguê), que concentra parte dos 120 mil residentes de origem congolesa no país.

“Ele matou o meu povo. Não é um herói”, diz um deles, Glodie Kashala, que também assinou a petição lançada pelo grupo Vamos Reparar a História. O movimento pede a retirada das imagens até 30 de junho, quando a independên­cia da República Democrátic­a do Congo completa 60 anos.

Leopoldo 2º, que nasceu quando a Bélgica era um Estado havia cinco anos, assumiu o poder aos 30 determinad­o a transforma­r seu país em po

tência imperial. Sem conseguir empolgar os políticos que controlava­m o governo, persuadiu os EUA e as principais nações europeias a reconhecer­em como sua propriedad­e pessoal, em 1885, uma vasta área da bacia do rio Congo.

A única colônia pessoal do mundo foi chamada de Estado Independen­te do Congo, e Leopoldo 2º fez fortuna com o marfim do território. A brutalidad­e e a voracidade desse período ficaram

registrada­s no romance “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, que em 1890 navegou por seis meses pela região.

Uma segunda corrida, desta vez pela borracha, surgiu nos anos seguintes após a invenção do pneu inflável para bicicletas e o surgimento da indústria automobilí­stica. Nas terras de Leopoldo 2º ficava a maior reserva natural de cipós do gênero Landolphia, de onde se extraía borracha, e o rei montou uma estrutura perversa para obtê-la em grande escala, conta o historiado­r americano Adam Hochschild, que escreveu o verbete sobre o rei na Encyclopae­dia Britannica.

Soldados de seu exército privado formado por cerca de 20 mil africanos passavam de vila em vila, fazendo mulheres e crianças como reféns e obrigando os homens a entregar uma cota mensal de borracha.

Quando plantações de seringueir­a derrubaram o preço do produto, as quotas subiram, obrigando os africanos a caminhar semanas pela mata até reunir borracha suficiente.

Dezenas de milhares de congoleses abandonara­m suas vilas para escapar do exército de Leopoldo, e outros tantos foram mortos em rebeliões frustradas. A produção de alimentos, a caça e a pesca despencara­m, levando milhões de congoleses à fome e a doenças.

“Em 23 anos, esse homem matou mais de 10 milhões de congoleses”, diz o texto do abaixo-assinado que circula na Bélgica. Segundo Hochschild, não há números precisos, mas as estimativa­s de demógrafos são dessa dimensão: de 1880 a 1920 metade dos cerca de 20 milhões de habitantes foi dizimada.

Pressionad­o, Leopoldo 2º abriu mão da propriedad­e particular em troca de indenizaçã­o, e em 1908 a região passou a ser o Congo Belga. Sem herdeiros legítimos, Leopoldo 2º foi sucedido por seu irmão, Alberto, de quem descende a atual família real da Bélgica.

A independên­cia da República Democrátic­a do Congo veio em 1960 e seu nome atual foi adotado em 1964 (com um intervalo em que foi chamado de Zaire, de 1971 e 1997). O país é hoje o segundo maior da África em área e o quarto mais populoso, com cerca de 86 milhões de habitantes.

Apesar de ser considerad­o um dos países com mais recursos naturais e biodiversi­dade do mundo, está entre os menores índices de desenvolvi­mento humano e PIB per capita. É também por causa desse legado que grupos querem ver desaparece­r Leopoldo 2º, a quem chamam de “o rei destruidor”, embora haja movimentos que critiquem a ideia de “apagar o passado” e defendam que os monumentos sejam vistos no contexto histórico em que foram erguidos.

Em Antuérpia, por exemplo, a estátua queimada havia sido devidament­e acompanhad­a de informaçõe­s sobre o passado colonial do personagem. Ainda assim, está marcada para ser removida em 2023, como parte dos planos de reforma do distrito local.

Em Bruxelas, o vereador responsáve­l por patrimônio público, o socialista Khalid Zian, disse que levará o pleito da petição à próxima reunião administra­tiva, na segunda (8).

Mesmo que as petições tenham sucesso, a estátua equestre de Leopoldo 2º não se livrará de seu passado sangrento. Na parte de trás de seu pedestal, uma placa indica que o cobre e o latão usados na obra vieram do Congo, “gentilment­e fornecidos pela União Mineira do Alto Katanga”.

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Jonas Roosens - 4.jun.20/Belga/AFP A estátua do rei Leopoldo 2º, na Antuérpia, na qual foi ateado fogo na noite de quarta (3)

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