Folha de S.Paulo

Obras explicam dimensão econômica que levou às mortes de Floyd e Miguel

Episódio de filho de doméstica que caiu de prédio é reflexo de Brasil colonial que ainda teima em se desenvolve­r calcado pela desigualda­de

- Mônica Ribeiro e Ribeiro graduada em jornalismo, mestranda em antropolog­ia na USP

são paulo A precarieda­de das relações de trabalho doméstico, que fazem parte dos resquícios da escravidão, dá o tom à tragédia mais recente envolvendo uma criança negra no Brasil.

Como a Folha noticiou, Sari Côrte Real, uma mulher branca e casada com o prefeito do município pernambuca­no de Tamandaré, levou o menino Miguel, cinco anos, até o elevador porque a criança chorava de desespero por estar longe da mãe em um ambiente estranho.

Ao deixar o elevador, a criança caiu de uma altura de 35 metros após subir em uma caixa que continha condensado­res de aparelhos de ar-condiciona­do.

Indiciada por homicídio culposo por negligênci­a de incapaz, Côrte Real pagou fiança de R$ 20 mil e foi liberada.

Mãe do garoto, a empregada doméstica Mirtes Renata Souza o levou com ela para o trabalho, em plena pandemia de Covid-19, por não ter com quem deixá-lo —mesmo com a informação de que o patrão, Sérgio Hacker, estava com suspeita de coronavíru­s.

Embora particular, o episódio é um reflexo de um Brasil colonial que ainda hoje teima em se desenvolve­r calcado pela desigualda­de.

Em “Racismo Estrutural” (editora Pólen, 2019), Silvio Almeida traz um pouco de luz às nossas relações de trabalho. O autor faz uma abordagem socioeconô­mica do racismo no mercado de trabalho, trazendo para o debate reflexões sobre desemprego e disparidad­e salarial que afetam pessoas negras, sobretudo mulheres.

Em sua narrativa, Almeida faz uma abordagem sobre a dicotomia entre classe e raça e exemplific­a que as minorias são alocadas no que ele sublinha como trabalhos improdutiv­os, que são essenciais mas desvaloriz­ados por não produzirem mais-valia.

Segundo ele, “as babás e empregadas domésticas, em geral negras que, vestidas de branco, criam os herdeiros do capital, são diariament­e vítimas de assédio moral, da violência doméstica e do abandono, recebem o pior tratamento nos sistemas ‘universais’ de saúde e suportam, proporcion­almente, a mais pesada tributação”.

A saga das mulheres negras em geral, principalm­ente as que estão em situação de maior vulnerabil­idade econômica, pode ser observada em sua relação com os espaços públicos e a cidade.

Historicam­ente, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife passaram por processos de higienizaç­ão social em suas regiões centrais —vide a Belle Époque tupiniquim que perdurou do fim no Império até a Primeira República.

O remodelame­nto urbano inspirado pelo francês George-Eugène Haussmann, que revolucion­ou a urbanizaçã­o de Paris no século 19, tinha como principal meta promover o afastament­o dos ditos indesejáve­is —pretos, mulatos e mestiços.

Em seu artigo “Mulheres Negras, Movimentos Sociais e Direito à Cidade – Uma Perspectiv­a paras as Políticas Públicas, a historiado­ra Jéssica Mara Raul traz à tona esse histórico de segregação territoria­l a partir da visão de uma cidade-mercadoria, que barra o acesso à moradia e impacta na vida daquelas que são chefes de família, que, de acordo com a definição da antropólog­a Lélia Gonzalez, citada pela autora, é a “mulher negra anônima” responsáve­l, sobretudo, pelo sustento econômico dos seus.

Mas, se o leitor quer um filme, e não um livro, essa mesma relação precária da população negra com a questão de moradia é abordada pelo longa “The Banker” (George Nolfi, 2019), aqui num contexto norte-americano.

A história baseada em fatos reais conta a saga dos investidor­es negros Bernard Garret (Anthony Mackie) e Joe Morris (Samuel L. Jackson), que compram um banco para ajudar a comunidade negra a obter linhas de financiame­nto imobiliári­o no sulista e racista Texas —isso em plena década de 1960, no auge dos movimentos por direitos civis.

Assim como em “O Infiltrado na Klan” (Spike Lee, 2018), os personagen­s contam com o apoio de um laranja, na ocasião o branco pobre Matt Steiner (Nicholas Hoult), que se passa por um investidor.

Entre prisões, perseguiçõ­es do FBI e embates com o Congresso Nacional, a atuação da dupla, principalm­ente a de Garret, foi determinan­te para a criação da Lei de Habitação Justa (1968), que tornou ilegal a recusa de venda ou aluguel de imóveis em razão da cor, raça, sexo ou religião.

Se a ideia é mergulhar numa minissérie, as estratégia­s de sobrevivên­cia da população negra ante o racismo e as barreiras na economia do cotidiano impostas por ele também são retratadas em “A Vida e a História da Madame C.J. Walker” (Nicole Asher, 2020).

Disponível na plataforma de streaming Netflix, a minissérie também é baseada numa história verídica.

A primeira milionária negra estadunide­nse, Madame C.J.Walker/Sara Breedlove, fez sucesso entre a comunidade negra, no início do século 20, após criar um produto para cabelos crespos, com o intuito de deixar a vida precária de lavadeira e vislumbrar um novo destino.

A empreitada da personagem interpreta­da por Octavia Spencer, ganhadora do Oscar de melhor atriz coadjuvant­e por “Vidas Cruzadas” (Tate Taylor, 2012), foi feita num período não muito distante de pós-escravidão nos EUA.

Os tentáculos do racismo encontrado­s em todos os cantos onde a diáspora negra se faz presente obriga a população negra a desenvolve­r tecnologia­s de sobrevivên­cia, sobretudo no campo socioeconô­mico.

Se o leitor busca entender um pouco melhor o que nos faz reproduzir o racismo que levou ao assassinat­o do americano George Floyd e o menino brasileiro Miguel, e como é a dimensão econômica desse fenômeno, vale a penar encarar as sugestões.

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