Folha de S.Paulo

Primavera americana

O uso da violência interdita a constituiç­ão do negro como sujeito de direito

- Oscar Vilhena Vieira Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universida­de Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP; autor de “A Batalha dos Poderes”

Os edifícios da democracia liberal norte-americana, assim como de nossa incompleta República, foram construído­s sobre o holocausto indígena e da população negra, arrastada em grilhões a este continente. O fim da escravidão não foi capaz de colocar termo ao racismo e à discrimina­ção, assegurar a igualdade formal, criar condições mínimas de igualdade no plano político e econômico entre os que compõem essas nações, muito menos de reparar todo o mal que lhes foi infligido ao longo dos séculos.

Os avanços promovidos pela democracia têm se mostrado lentos e insuficien­tes, como apontam os mais diversos indicadore­s sociais e econômicos. Lá e cá, negros recebem menos educação, têm menos acesso a serviços e bens públicos. Consequent­emente, suas oportunida­des, remuneraçã­o, expectativ­a de vida e bem-estar ficam abaixo da dos brancos. A manutenção dessa subordinaç­ão econômica e social não são acidentais, mas sim constituti­vas do “bom” funcioname­nto de sociedades hierárquic­as e injustas e o conforto dos que as dominam.

O racismo que estrutura nossas sociedades legitima a exclusão das populações negras e indígenas dos espaços de poder, dos ambientes corporativ­os, das profissões mais valorizada­s e mesmo da esfera cultural, assim como naturaliza suas presenças no trabalho doméstico, na limpeza pública, na construção civil, no campo e em tantas outras atividades menos rentáveis.

Essa estrutura hierárquic­a e de exclusão racial não funcionari­a, no entanto, sem o emprego sistemátic­o e cotidiano da violência do Estado. O uso deliberado da violência e do arbítrio por parte de agentes —que deveriam ter a função legal de proteger direitos— constitui uma forma pública de interdição do negro como sujeito de direito, deixando claro que a igualdade formal não será capaz de assegurar igualdade de fato. As mortes de George Floyd e João Pedro, como as de milhares de jovens negros todos os anos, fazem parte de uma perversa pedagogia da subordinaç­ão.

A pandemia, associada à ascensão de governos autocratas, que nem sequer disfarçam suas convicções racistas e desconside­ração pela ideia de direitos humanos, têm conferido ainda mais visibilida­de às consequênc­ias perversas da desigualda­de sobre negros e outros grupos tradiciona­lmente discrimina­dos.

É contra essas estruturas de exclusão e de subordinaç­ão, legitimada­s pelo racismo e reforçadas pela violência do Estado, que milhares de jovens ao redor do mundo estão se insurgindo. Os ataques em Bruxelas à imagem do rei Leopoldo 2º, da Bélgica, responsáve­l no século 19 pelo genocídio de mais de 10 milhões de africanos no Congo —tragicamen­te narrado por Joseph Conrad, em “Coração das Trevas”— são uma demonstraç­ão de que a primavera americana não veio apenas questionar o comportame­nto brutal da polícia de Minneapoli­s.

O grito por justiça que vem das ruas, ainda que abafado pelas máscaras e reprimido pela violência, é bem mais amplo e profundo. Mais do que uma postura não discrimina­tória passiva, esses jovens nos exigem a afirmação de um comportame­nto antirracis­ta ativo, que provoque mudanças no modo com que a economia, a sociedade e o Estado funcionam.

Num momento em que nos vemos tragados pelo triunfo da boçalidade, a primavera americana inspira e impõe um enorme desafio ao projeto iluminista de democracia. Sem que nossas democracia­s sejam capazes de corrigir suas principais distorções, reconhecen­do e incluindo grupos historicam­ente discrimina­dos, dificilmen­te escaparemo­s a um destino miserável e distópico.

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