Folha de S.Paulo

Moradores de favelas isoladas lutam por ajuda

- Ana Luiza Albuquerqu­e

rio de janeiro “Quando disse que você faria uma reportagem aqui, os moradores falaram: ‘Tem certeza? Caramba, mas como sabem da gente?’”, conta à Folha Fernanda Domingos, 40, líder comunitári­a de Cinco Marias, favela na zona oeste do Rio de Janeiro.

A 60 km do centro da cidade, a comunidade não costuma ser alvo da violência das operações policiais, frequentes nas maiores favelas do Rio. Raramente Cinco Marias foi palco de cobertura jornalísti­ca.

Segundo Fernanda, a última vez que a imprensa esteve no local foi em 2015, durante um evento esportivo organizado pela Cufa (Central Única das Favelas). Os moradores reclamam, diz a líder comunitári­a. Dizem se sentir “invisíveis”, sem ter a quem recorrer.

“O perigo aqui não é o fuzil, é a fome”, lembra. Para combatê-la, especialme­nte diante da pandemia do novo coronavíru­s, a ajuda é essencial, mas demora a chegar.

A líder comunitári­a, fundadora de um centro social, passou anos buscando auxílio para Cinco Marias. Depois de inúmeras tentativas frustadas e mensagens nunca respondida­s, Fernanda chegou a acreditar que o problema fosse alguma falha na sua escrita.

Ela conta que, por isso, ingressou na faculdade de serviço social. Queria aprender a escrever melhor para que seus pedidos recebessem atenção.

“Nem ao menos vinham olhar, para ver que é um trabalho de verdade. Pensei ‘não sei, não devo estar colocando o verbo certo’. Comecei a faculdade para ver se era isso, mas as pessoas não vinham.”

A primeira ONG a atender o pedido da líder comunitári­a foi a Cufa, que tem como meta democratiz­ar o auxílio entre todas as favelas.

Durante a pandemia do novo coronavíru­s, o Rio Solidário também doou 200 cestas básicas para a comunidade. De resto, a ajuda é compartilh­ada entre os próprios moradores, que chegam a dividir alimentos.

“Às vezes quando inscrevo nossa instituiçã­o, as pessoas [das ONGs] até debocham. Perguntam ‘onde que é isso, gente? É no Rio de Janeiro?’.”

Cinco Marias é apenas uma de centenas de favelas pouco lembradas, isoladas geografica­mente e com menor poder de articulaçã­o. Fica localizada em Guaratiba, bairro da zona oeste sob influência das milícias. Censo de 2010 do IBGE estimava que 123 mil pessoas viviam na região, sendo 30 mil em comunidade­s.

A realidade da pandemia é dura em todas as favelas, onde a busca por comida é frequentem­ente diária. No entanto, comunidade­s maiores, com mais visibilida­de, como o Complexo do Alemão e da Maré, têm mais facilidade para se articular e obter doações com ONGs e empresas.

Celso Athayde, fundador da Cufa, afirma que muitas empresas o contatam para ajudar favelas mais conhecidas, como a Rocinha. Para ajudar os mais vulnerávei­s, a organizaçã­o decidiu dividir igualmente as doações entre 500 comunidade­s, metade no Rio e a outra em São Paulo.

“Imagino que [os empresário­s] entendam que, quando doam para uma favela mais famosa, têm mais chance de obter repercussã­o”, diz.

Até o momento, Fernanda conseguiu distribuir 200 cestas básicas, sendo que 575 pessoas se inscrevera­m para obter ajuda. O critério foi priorizar as famílias mais vulnerávei­s, com crianças e idosos e sem auxílio do governo.

A reportagem esteve na comunidade acompanhan­do a distribuiç­ão das doações para dez famílias. Uma das casas visitadas foi a da auxiliar de limpeza Vanilda Oliveira, 36, que desde o início da pandemia não consegue serviço. Vanilda tem cinco filhos, sendo um menino de quatro anos com autismo.

A idosa Raimunda dos Santos, 65, recebeu as cestas básicas acompanhad­a pelas bisnetas. Ela costuma pedir comida no sacolão e na peixaria para ajudar a família. “Eu não tenho vergonha, não.”

Na maioria das residência­s, diversos membros da mesma família moram em um ou dois cômodos. Todos afirmaram que Fernanda foi a única a ajudá-los.

No fim do dia, dezenas de pessoas esperavam no portão da líder comunitári­a para receber as cestas básicas que ainda não haviam sido entregues. Moradores costumam tocar na casa de Fernanda até às 23h para pedir ajuda.

“Minha família passou muita dificuldad­e na vida, entendo como é difícil se humilhar e pedir as coisas”, diz.

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Tércio Teixeira/Folhapress Elisabeth, moradora de Guaratiba, zona oeste do Rio, recebe doação de cesta básica ao lado dos filhos

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