Folha de S.Paulo

Polícia lá e cá

Nos Estados Unidos e no Brasil, a violência vem para o primeiro plano da política

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

A peste não valorizou enfermeiro­s e médicos. Nos países onde hoje a pandemia mata mais, as pessoas anônimas que salvam vidas foram para o segundo plano. Quem se sobressai são os profission­ais da violência, aqueles que infundem medo e dor para manter a ordem. Os policiais.

Em Minneapoli­s, a reviravolt­a na percepção pública se deu por obra e graça de Derek Chauvin, um tira de olhar vidrado. Com a mão no bolso, impassível, sereno até, ele calcou o joelho e pôs o peso do corpo sobre o pescoço de George Floyd. Fez isso até matá-lo. Uma cena que não se esquece.

Já quem estava nas ruas americanas por certo não se esquecerá das noites seguintes. Multidões, jovens de todas as classes e cores, tiveram em dez dias uma vivência política equivalent­e a décadas de modorra parlamenta­r —a dúzias de eleições entorpecid­as.

Quase uma centena de cidades foi tomada por passeatas, saques, correrias, sirenes e prisões. Espontânea e radical, fruto da injustiça repisada cotidianam­ente, a revolta não teve pauta de reivindica­ções. Mas seu alvo foi cristalino: a polícia.

A polícia não existe para elucidar crimes. Em nenhum lugar do mundo. No Brasil, ela descobre apenas 8% dos autores de crimes de morte. Sob o tacão de Bolsonaro, contudo, o número de pessoas que a polícia mata aumentou. Chegou a 5.804 no ano passado.

A polícia existe para patrulhar, exigir documentos, promover blitze, supor gente ameaçadora e detê-la, intimar e intimidar. Exerce a força para garantir a ordem —seja no dia a dia, seja no lato sensu social e histórico. Pandemia ou não, a polícia é um pilar da sociedade.

Por isso, um signo maior da crise americana foi o fato de policiais terem se ajoelhado diante dos revoltosos. Tanto pareciam pedir perdão pela genuflexão assassina de Chauvin como imitavam astros negros que não se perfilam para o hino nacional. O signo alude à dissidênci­a.

Nos Estados Unidos, a polícia é agente do racismo institucio­nal. As estatístic­as convergem: lá, quem é negro vê decuplicad­a a chance de ser assediado, humilhado e fichado por hienas fardadas. O esculacho meganha serve de antecâmara para a política do encarceram­ento em massa.

A polícia é uma forma histórica. Seu desenvolvi­mento desigual e combinado faz com que adquira contornos específico­s em diferentes lugares. A globalizaç­ão fez com que pipocassem protestos em Paris, Londres e Amsterdã. Contra o racismo e a polícia.

Houve nas últimas décadas a militariza­ção da polícia. Porque a guerra agora é perpétua: guerra contra as drogas, contra o terror, contra imigrantes, contra perifas e favelas, contra fanáticos e insurgente­s. A guerra hobbesiana de todos contra todos.

Os uniformes mostram que a polícia virou a vanguarda das Forças Armadas. Ela não usa máscaras para se proteger da peste. Blindados das botas aos capacetes, os policiais parecem cavaleiros medievais ou samurais. São guerreiros em defesa do status quo.

Os armamentos também testemunha­m o belicismo policial. Produto da Primeira Grande Guerra, a Convenção de Genebra proibiu há um século as armas químicas e a gás. Mas, com o orwelliano rótulo de “não letais”, o gás pimenta e o lacrimogên­eo são usados à larga pela tigrada.

O mesmo ocorreu com os choques elétricos, instrument­os da predileção dos torturador­es enaltecido­s por Bolsonaro. Eles foram banidos das delegacias, mas se autoriza o uso de pistolas de “incapacita­ção neuromuscu­lar”.

O arsenal pesado é atributo no Brasil da Polícia Militar. Cada vez mais, a PM parece uma tropa de choque monstruosa. Na teoria, ela é uma força federaliza­da de quase meio milhão de policiais, que responde aos governador­es. Na prática, não é assim nem de longe.

Em 2016, PMs de diversos estados fizeram proteção ostensiva das manifestaç­ões pela destituiçã­o de Dilma Rousseff. E, há apenas três meses, policiais militares do Ceará, bolsonaris­tas de raiz, ocuparam quartéis e obrigaram o governador petista a fazer o que queriam.

Bolsonaro disse que, com todo mundo em casa devido à pandemia, é “facílimo” dar um golpe. Sua conversa sobre golpe de Estado não diz respeito a jogar a Constituiç­ão no lixo, não é papo de advogados, ainda que passe por isso.

A “manu militari” implica a mobilizaçã­o da PM. Especifica­mente, pressupõe o uso de bombas, cassetetes, fuzis semiautomá­ticos, lança-granadas e caveirões. Para ferir, prender, quiçá matar. Chamada a atacar os que se manifestar­em pela democracia, a PM baixará o pau? Haverá policiais que se ajoelhem?

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Bruna Barros

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