Folha de S.Paulo

Uma morte por minuto

Não vejo nenhum sentido em bater recordes como os dos grandes atletas

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Às vezes penso que estou em um roteiro parecido com “Adeus, Lenin!”. No filme de Wolfgang Becker, uma mulher comunista convicta entra em coma antes da queda do muro de Berlim e só retorna depois da unificação alemã. Temerosos do impacto que isso pudesse causar à mãe, os filhos tentam manter as aparências, fazendo de conta de tudo continuava como antes.

A diferença que vejo do roteiro do filme para o que vivemos no presente é que não consigo encontrar outro momento da história em que as coisas estivessem tão fora dos trilhos como agora.

Parecia inimagináv­el que pessoas em posição de liderança fizessem tanta bobagem e agissem com tamanha indiferenç­a diante do sofrimento. Jamais imaginei ver neste país mortos serem contabiliz­ados diariament­e, como se contam as jabuticaba­s que nascem na árvore que tenho na frente de casa.

Isso tudo não parece real, ou melhor, eu desejava do fundo da minha alma que assim não o fosse.

De fato, me sinto num filme de terror. Junto com minha família, entrei em quarentena em 14 de março. Desde o princípio estamos atentos ao que dizem os colegas e amigos que ajudam a afirmar o método científico. Ou seja, saímos apenas para o necessário e, quando o fazemos, usamos máscara e mantemos distanciam­ento. Trabalhamo­s de forma remota.

Também temos a convicção de que a Terra é redonda, que microrgani­smos são responsáve­is pela transmissã­o de doenças e que a Covid-19 não é apenas uma gripezinha.

E mais, lamentamos profundame­nte a perda da vida de milhares de pessoas que poderiam ainda ver o sol raiar e o time do coração ser campeão não fosse o descaso de lideranças que não fazem outra coisa a não ser cuidar dos próprios interesses, como se o Estado fosse uma empresa privada.

Nada me choca mais do que a banalizaçã­o da morte. A insensibil­idade diante da perda de uma vida é um claro sinal de desumaniza­ção e sintoma de uma patologia que se multiplica em proporção maior que a pandemia.

Os óbitos são contados e equiparado­s a um tempo que não se mede pelo relógio. A capa da edição impressa da Folha nesta sexta (5) dá a dimensão da tragédia: é uma morte por minuto. E um minuto é muito mais do que 60 segundos quando o mais importante é preservar a vida.

Percebo entre as pessoas próximas como é difícil acreditar nas notícias que a todo instante se contradize­m: como voltar às aulas, abrir o comércio e dizer que está tudo bem se diariament­e quase 1.500 pessoas deixam de existir? Não é possível chamar isso de normalidad­e. É por demais desumano fazer crer que assim é que as coisas são e sempre foram.

Enquanto isso o esporte segue parado, muito embora em algumas regiões a chamada

“nova normalidad­e” leve à abertura de estabeleci­mentos e espaços onde a produção “não pode parar”. E o recado é claro: se um cair, outro se levantará para ocupar esse lugar. O esporte pode ser muito mais do que isso.

Uma morte por minuto. Como o tempo é valioso quando uma fração de segundo pode levar uma pessoa a entrar para a história.

Porque o esporte é assim. Espero que as coisas mudem, porque não desejo ver as passadas de Usain Bolt ou as braçadas de Michel Phelps nos 100 metros como referência­s para contar as perdas do dia.

Não vejo nenhum sentido em bater recordes como desses atletas. Nesse campeonato, teria sido uma honra olhar lá da última colocação, do lugar dos derrotados, o resultado dos grandes vencedores e lamentar tantas perdas.

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