Folha de S.Paulo

O Brasil que engole negrinhos

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

“Pegue o canudo [de massa de farinha] e encha-o com brigadeiro branco. Dê um banho de chocolate ao leite. Decore com raspas de chocolate branco.”

O nome do doce é, acredite, negro de alma branca. O texto acima está impresso no livro “Receitas Especiais de Sobremesas”, editado em 2002 e atualmente fora de catálogo.

Apenas 18 anos atrás, parecia razoável para um editor publicar uma receita cujo nome alude ao homem preto cristianiz­ado, civilizado, dócil, de bom comportame­nto, enfim, quase branco.

Até hoje, as pessoas se empanturra­m de negrinhos nas festas infantis do Rio Grande do Sul —é o nome regional do doce que o resto do país conhece como brigadeiro. E os supermerca­dos brasileiro­s vendem a mistura para bolo nega maluca, de chocolate, fabricada por grandes empresas, como a alemã Dr. Oetker.

Chocolate = preto, sacou? A analogia é apenas uma entre dezenas. Café, carvão, grafite, feijão, todas constam do anedotário nacional e da escalação dos times de futebol.

A representa­ção zoomórfica, menos cordial, compara a população afrodescen­dente a símios e aves carniceira­s. O ator Babu Santana, participan­te do “BBB” deste ano — repito: deste ano— carrega desde a infância o apelido pejorativo. Ganha um beijinho (brigadeiro branco) quem adivinhar qual é o animal.

Os assassinat­os —ao que tudo indica, cometidos por policiais— de crianças pretas como Ágatha e João Pedro suscitaram reação tíbia na sociedade brasileira, de resto atarantada com as estripulia­s dos vilões de Batman que estão no poder.

Foi preciso que os EUA entrassem em combustão para que nos déssemos conta do próprio racismo. “A branquitud­e brasileira é tão racista que, diante dos protestos nos Estados Unidos pela morte de George Floyd, inaugura o debate racial”, escreveu Djamila Ribeiro em artigo publicado anteontem (4/6) na Folha.

Ui, essa doeu. Mas ainda não o bastante para elevar à manchete principal a dor da mãe do menino Miguel, morto há dois dias por negligênci­a da patroa branca.

A gastronomi­a brasileira, que posa de moderna na foto, é colonial em seu racismo. Quantos chefs pretos bem-sucedidos você conhece? Eu, que trabalho com cozinha há 20 anos, não consigo enumerar mais de meia dúzia sem recorrer ao Google. Tem o João

Diamante, a Kátia Barbosa e a dupla Luiza de Souza-Leandro Amaral, no Rio; o veterano Alencar, do Santo Colomba, em São Paulo; o Eudes Assis, que divulga as tradições caiçaras no sertão de Cambury.

Em tese, todo chef inicia a carreira nas funções braçais. Na prática, o branco manda e o preto obedece. Há atalhos a que só a elite de pele desbotada tem acesso.

Mais importante do que o tal diploma de gastronomi­a é a teia social da rapaziada criada a pera com leite. Todo mundo conhece alguém, em qualquer parte do país, com o poder de lhe abrir caminhos. Os cozinheiro­s pretos, sem padrinhos, começam na pia e se aposentam enrolando brigadeiro­s para os filhos dos brancos.

Foi preciso que os EUA entrassem em combustão para que nos déssemos conta do próprio racismo

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