Folha de S.Paulo

‘A Gaiola’ retrata espírito revolucion­ário de juventude mexicana na década de 1960

José Revueltas concebeu o livro quando esteve preso na famosa e imponente penitenciá­ria de Lecumberri

- Sylvia Colombo

Três personagen­s estão confinados na cela de isolamento de uma prisão. Uma cela de castigo. Ou seja, uma prisão dentro da prisão. Três personagen­s desesperan­çados em obter a liberdade e vivendo no limite do desespero. Assim estão Caralho, Albino

e Polonio, os protagonis­tas de “A Gaiola”, dando voltas em sua própria desgraça.

O único contato que têm com o lado de fora é um buraco em que é preciso meter a cabeça de um só lado, ou seja, só se pode enxergar com um olho. E a cabeça ali, descolada do corpo, lembra a passagem bíblica do martírio de são João Batista, com sua cabeça servida numa bandeja.

Criar esse universo, pelo visto, também foi uma experiênci­a de desespero. Seu autor, o mexicano José Revueltas, concebeu o livro quando esteve preso na famosa e imponente penitenciá­ria de Lecumberri, na Cidade do México. Construída na forma de um panóptico, em que de uma torre central era possível ver o interior de todas as celas, ficou conhecida por enlouquece­r vários de seus prisioneir­os.

Ali Revueltas ficou encarcerad­o entre 1968 e 1971, após ser condenado por conspirar e instigar estudantes envolvidos em manifestaç­ões que foram reprimidas, no famoso Massacre de Tlatelolco.

Ocorrido às vésperas dos Jogos Olímpicos na Cidade do México, o episódio é um dos mais importante­s marcos da história mexicana do século 20. Imbuídos do espírito revolucion­ário dos estudantes franceses do Maio de 1968, no mesmo ano, os jovens mexicanos saíram a protestar e foram brutalment­e reprimidos pelo governo.

O episódio ganhou visibilida­de internacio­nal e houve repúdio de intelectua­is em todo o mundo. Jean-Paul Sartre chegou a escrever ao presidente do país, Gustavo Díaz Ordaz, em tom de indignação. Díaz Ordaz ficaria marcado por isso, e mancharia também a imagem doPartido Revolucion­ário Institucio­nal, o PRI, que governou o país por sete décadas.

O romance se desenrola numa narrativa algo barroca e bem trabalhada, embora provoque a sensação de ter sido escrita num transe delirante do autor. Com seus longos parágrafos com pouca pontuação, parece não querer deixar que o leitor respire. A claustrofo­bia da cela dentro da cela, ou da gaiola, é outro sentimento do autor que é imposto ao leitor.

O personagem mais extremo é Caralho, um sujeito que não enxerga de um olho, que apanha e que tenta se cortar, além de soltar seus gritos uivantes de tempos em tempos. É filho de uma mulher que se envergonha de sua existência, que o visita mas o deplora.

Polonio e Albino estão desesperad­os para conseguir algo de droga, e põem suas namoradas, que estão do lado de fora, nessa missão. Surgem essas duas personagen­s esquisitas, oportunist­as e maliciosas, são Mecha e Chata.

Como passam por revistas íntimas ao visitar os parceiros, nas quais são tocadas de modo pouco apropriado, elas tentam convencer a mãe do Caralho, por ser mais velha e pouco atraente, a levar escondida a droga em sua vagina.

Aí parece se cumprir sua desgraça —deu à luz um ser aberrante e agora, pela mesma via, leva drogas. Ao mesmo tempo, surge também como redenção dos prisioneir­os, oferecendo um alívio para seu desespero ou até uma forma de saída de sua situação.

A Gaiola

José Revueltas. Trad. Samuel Titán Jr. Editora 34. R$ 42 (64 págs.)

 ?? AFP ?? Manifestan­tes presos por soldados no episódio que ficou conhecido como Massacre de Tlatelolco, na Cidade do México, em 1968
AFP Manifestan­tes presos por soldados no episódio que ficou conhecido como Massacre de Tlatelolco, na Cidade do México, em 1968

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil