Governo Bolsonaro passa a sonegar dado sobre Covid-19
Saúde agora só divulga números das últimas 24 horas; parlamentares, secretários e TCU reagem
Após recordes de mortes diárias e atrasos na divulgação de estatísticas da Covid-19, o governo Jair Bolsonaro decidiu restringir a oferta de dados sobre o avanço da doença no país —que é o terceiro do mundo em casos fatais.
O boletim diário do Ministério da Saúde só apresenta agora os números relativos às últimas 24 horas. A pasta passa a sonegar informações como o total acumulado de mortes (quase 36 mil) e de casos (mais de 670 mil).
Em nota postada por Bolsonaro, a pasta afirma que o formato de divulgação usado desde o início da pandemia não retrata o “momento do país”. Questionado sobre a nova metodologia, o presidente não quis responder.
À Folha o novo secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do ministério, Carlos Wizard, confirmou que há intenção de rever daqui para a frente os critérios de contagem de vítimas do novo coronavírus.
Parlamentares e representante dos secretários de Saúde atacaram a medida, e o TCU estuda requisitar os dados. Para o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, a atitude da pasta é lealdade militar “burra e genocida”.
O Brasil restringiu a divulgação de dados sobre o impacto do novo coronavírus no país. Desde a noite de sexta-feira, o Ministério da Saúde não mais informa o total de mortes e nem o total de casos confirmados da Covid-19 durante a pandemia.
O portal do Ministério da Saúde com as informações consolidadas saiu do ar na noite da sexta-feira (5), e só retornou na tarde deste sábado (6). Agora, a página mostra somente os números registrados no último dia.
O presidente Jair Bolsonaro confirmou a mudança na metodologia de divulgação sobre vítimas da Covid-19 — que pode significar, na prática, a divulgação de números de mortes menores—, engrossando as críticas de que o governo pretende manipular dados da pandemia.
A pasta vai passar a divulgar apenas os números de mortes e casos de infecção pelo coronavírus registrados nas últimas 24 horas, o que resultaria em números muito inferiores aos atuais. Desde o início da pandemia, o Ministério vinha divulgando com destaque os números de mortes e casos que foram confirmados para a Covid-19 nas últimas 24 horas, incluindo casos de mortes ocorridas em outras datas, mas cuja confirmação para o coronavírus tenha ocorrido no último dia.
O governo também deixou de divulgar o total de casos em investigação para a doença, que até quinta-feira (4) era de 4.159.
As mudanças ocorrem após dois dias seguidos com recorde de mortes e divulgação tardia dos números. O país é o terceiro no mundo com mais mortes acumuladas em decorrência da doença, mais de 35 mil, e acumula mais de 640 mil casos de coronavírus, número que, segundo especialistas, pode ser múltiplas vezes maior devido à baixa testagem no país.
Em nota postada por Bolsonaro nas redes sociais, o Ministério da Saúde afirma que o formato anterior não oferece uma representação do “momento do país”, posição que contrasta com a da maioria dos especialistas.
Questionado sobre a mudança da metodologia neste sábado (6), durante uma visita que fez a Formosa (GO), Bolsonaro não quis responder.
As movimentações do governo causaram fortes críticas nos meios político e jurídico. As críticas se intensificaram também com declarações do novo secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Carlos Wizard, sobre recontagem das mortes, noticiadas pelo jornal O Globo.
Sem explicar por que não confia nos dados, ele afirmou que números divulgados até aqui são “fantasiosos ou manipulados”. Segundo ele, a quantidade de óbitos, na verdade, é menor do que a anunciada.
Em entrevista à Folha neste sábado, Wizard confirmou que há uma intenção dentro da pasta de rever os critérios, mas para os próximos dados. “O passado já passou, estamos preocupados daqui para a frente”, afirma.
Na quarta-feira, foram 1.349 óbitos. No dia seguinte, o Brasil teve novo recorde de mortes (1.473), atingindo a marca de mais de um morto por minuto pela Covid-19.
O modelo que será abandonado também é usado na divulgação dos dados por praticamente todos os países.
O texto da nota argumenta que a divulgação dos dados de 24 horas permite acompanhar a realidade do país neste momento e definir as melhores estratégias para o atendimento da população.
“Ao acumular dados, além de não indicar que a maior parcela já não está com a doença, não retratam o momento do país. Outras ações estão em curso para melhorar a notificação dos casos e a confirmação diagnóstica”, afirma a nota.
O Ministério também defendeu a divulgação dos dados tarde da noite, após as 22h. Na nota postada por Bolsonaro, a pasta argumenta que havia risco de subnotificação quando os boletins do coronavírus eram tornados públicos às 17h (como era feito durante a gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta) e às 19h (gestão de Nelson Teich).
Na primeira vez em que houve atraso na divulgação, na quarta-feira (3), o Ministério da Saúde havia informado que excepcionalmente os números seriam informados às 22h, devido a “problemas técnicos”. Naquele dia, o país registrou recorde de mortes.
No dia seguinte, quando o Brasil outro recorde de mortes, a pasta novamente divulgou o boletim após as 22h.
Esse horário de divulgação se dá após a conclusão dos principais jornais diários e após a transmissão dos principais telejornais da noite.
Ao comentar a questão, na sexta-feira (5), o presidente não confirmou ter dado a ordem para a mudança de horário e alegou que os números sairiam mais consolidados às 22h. Por outro lado, comentou que “acabou matéria no Jornal Nacional”, em referência ao telejornal da Rede Globo.
“Não interessa de quem partiu [a ordem para modificar o horário], é justo sair às 22h, é o dado completamente consolidado. Muito pelo contrário, não tem que correr para atender a Globo”, disse.
A nota postada por Bolsonaro também afirma que está havendo adequação de rotinas e fluxos para melhor extrair os dados diários. “Para evitar subnotificação e inconsistências, o Ministério da Saúde optou pela divulgação às 22h, o que permite passar por esse processo completo.”