Folha de S.Paulo

Governo Bolsonaro passa a sonegar dado sobre Covid-19

Saúde agora só divulga números das últimas 24 horas; parlamenta­res, secretário­s e TCU reagem

- Renato Machado, Daniel Carvalho, Matheus Teixeira e Natalia Cancian

Após recordes de mortes diárias e atrasos na divulgação de estatístic­as da Covid-19, o governo Jair Bolsonaro decidiu restringir a oferta de dados sobre o avanço da doença no país —que é o terceiro do mundo em casos fatais.

O boletim diário do Ministério da Saúde só apresenta agora os números relativos às últimas 24 horas. A pasta passa a sonegar informaçõe­s como o total acumulado de mortes (quase 36 mil) e de casos (mais de 670 mil).

Em nota postada por Bolsonaro, a pasta afirma que o formato de divulgação usado desde o início da pandemia não retrata o “momento do país”. Questionad­o sobre a nova metodologi­a, o presidente não quis responder.

À Folha o novo secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégic­os do ministério, Carlos Wizard, confirmou que há intenção de rever daqui para a frente os critérios de contagem de vítimas do novo coronavíru­s.

Parlamenta­res e representa­nte dos secretário­s de Saúde atacaram a medida, e o TCU estuda requisitar os dados. Para o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, a atitude da pasta é lealdade militar “burra e genocida”.

O Brasil restringiu a divulgação de dados sobre o impacto do novo coronavíru­s no país. Desde a noite de sexta-feira, o Ministério da Saúde não mais informa o total de mortes e nem o total de casos confirmado­s da Covid-19 durante a pandemia.

O portal do Ministério da Saúde com as informaçõe­s consolidad­as saiu do ar na noite da sexta-feira (5), e só retornou na tarde deste sábado (6). Agora, a página mostra somente os números registrado­s no último dia.

O presidente Jair Bolsonaro confirmou a mudança na metodologi­a de divulgação sobre vítimas da Covid-19 — que pode significar, na prática, a divulgação de números de mortes menores—, engrossand­o as críticas de que o governo pretende manipular dados da pandemia.

A pasta vai passar a divulgar apenas os números de mortes e casos de infecção pelo coronavíru­s registrado­s nas últimas 24 horas, o que resultaria em números muito inferiores aos atuais. Desde o início da pandemia, o Ministério vinha divulgando com destaque os números de mortes e casos que foram confirmado­s para a Covid-19 nas últimas 24 horas, incluindo casos de mortes ocorridas em outras datas, mas cuja confirmaçã­o para o coronavíru­s tenha ocorrido no último dia.

O governo também deixou de divulgar o total de casos em investigaç­ão para a doença, que até quinta-feira (4) era de 4.159.

As mudanças ocorrem após dois dias seguidos com recorde de mortes e divulgação tardia dos números. O país é o terceiro no mundo com mais mortes acumuladas em decorrênci­a da doença, mais de 35 mil, e acumula mais de 640 mil casos de coronavíru­s, número que, segundo especialis­tas, pode ser múltiplas vezes maior devido à baixa testagem no país.

Em nota postada por Bolsonaro nas redes sociais, o Ministério da Saúde afirma que o formato anterior não oferece uma representa­ção do “momento do país”, posição que contrasta com a da maioria dos especialis­tas.

Questionad­o sobre a mudança da metodologi­a neste sábado (6), durante uma visita que fez a Formosa (GO), Bolsonaro não quis responder.

As movimentaç­ões do governo causaram fortes críticas nos meios político e jurídico. As críticas se intensific­aram também com declaraçõe­s do novo secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégic­os do Ministério da Saúde, Carlos Wizard, sobre recontagem das mortes, noticiadas pelo jornal O Globo.

Sem explicar por que não confia nos dados, ele afirmou que números divulgados até aqui são “fantasioso­s ou manipulado­s”. Segundo ele, a quantidade de óbitos, na verdade, é menor do que a anunciada.

Em entrevista à Folha neste sábado, Wizard confirmou que há uma intenção dentro da pasta de rever os critérios, mas para os próximos dados. “O passado já passou, estamos preocupado­s daqui para a frente”, afirma.

Na quarta-feira, foram 1.349 óbitos. No dia seguinte, o Brasil teve novo recorde de mortes (1.473), atingindo a marca de mais de um morto por minuto pela Covid-19.

O modelo que será abandonado também é usado na divulgação dos dados por praticamen­te todos os países.

O texto da nota argumenta que a divulgação dos dados de 24 horas permite acompanhar a realidade do país neste momento e definir as melhores estratégia­s para o atendiment­o da população.

“Ao acumular dados, além de não indicar que a maior parcela já não está com a doença, não retratam o momento do país. Outras ações estão em curso para melhorar a notificaçã­o dos casos e a confirmaçã­o diagnóstic­a”, afirma a nota.

O Ministério também defendeu a divulgação dos dados tarde da noite, após as 22h. Na nota postada por Bolsonaro, a pasta argumenta que havia risco de subnotific­ação quando os boletins do coronavíru­s eram tornados públicos às 17h (como era feito durante a gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta) e às 19h (gestão de Nelson Teich).

Na primeira vez em que houve atraso na divulgação, na quarta-feira (3), o Ministério da Saúde havia informado que excepciona­lmente os números seriam informados às 22h, devido a “problemas técnicos”. Naquele dia, o país registrou recorde de mortes.

No dia seguinte, quando o Brasil outro recorde de mortes, a pasta novamente divulgou o boletim após as 22h.

Esse horário de divulgação se dá após a conclusão dos principais jornais diários e após a transmissã­o dos principais telejornai­s da noite.

Ao comentar a questão, na sexta-feira (5), o presidente não confirmou ter dado a ordem para a mudança de horário e alegou que os números sairiam mais consolidad­os às 22h. Por outro lado, comentou que “acabou matéria no Jornal Nacional”, em referência ao telejornal da Rede Globo.

“Não interessa de quem partiu [a ordem para modificar o horário], é justo sair às 22h, é o dado completame­nte consolidad­o. Muito pelo contrário, não tem que correr para atender a Globo”, disse.

A nota postada por Bolsonaro também afirma que está havendo adequação de rotinas e fluxos para melhor extrair os dados diários. “Para evitar subnotific­ação e inconsistê­ncias, o Ministério da Saúde optou pela divulgação às 22h, o que permite passar por esse processo completo.”

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