Folha de S.Paulo

Invasão brasileira na Copa de 1970

Jogo da seleção contra a Inglaterra na Copa de 1970 teve ‘tomada’ do vestiário

- Tostão

Dr. Roberto Abdala Moura, que me operou o olho, conta: “Quatro mosqueteir­os foram, de madrugada, ao estádio. Acordaram os seguranças, que nos deixaram ocupar o vestiário ideal, com a bandeira do Brasil e tudo mais”.

No dia 7 de junho, há 50 anos, o Brasil vencia a Inglaterra, por 1 a 0, na Copa de 1970. Gérson, contundido, não jogou. Rivellino fez a função de Gérson, pelo meio, e Paulo Cézar Caju, a de Rivellino, pela esquerda. Mas, quando time recuperava a bola, Caju avançava mais que Rivellino pela ponta. Com a vitória, o Brasil bateu o principal adversário do grupo e praticamen­te garantiu o primeiro lugar.

Dr. Roberto Abdala Moura, que me operou o olho e que assistiu a todos os jogos da seleção no estádio, convidado pela comissão técnica, conta, em um dos capítulos do meu último livro, “Tempos vividos, sonhados e perdidos”, uma deliciosa e até então inédita história.

“Estádio de Jalisco, Guadalajar­a. Meio-dia. Fazia um escaldante calor. O estádio era bom, mas só havia energia elétrica em um dos vestiários. À noitinha, com os jogadores recolhidos para o descanso, alguém disse: ‘amanhã, temos de chegar bem cedo ao estádio, para pegar o vestiário que tinha energia elétrica’. Outro perguntou: ‘e se os ingleses chegarem primeiro’? Nos entreolham­os, e alguém falou: ‘vamos agora’”.

Dr. Roberto continua: “Assim, quatro mosqueteir­os foram, de madrugada, ao estádio. Acordaram os seguranças, que, após as explicaçõe­s, nos deixaram ocupar o vestiário ideal, com a bandeira do Brasil e tudo mais. O resultado foi que, com o calor infernal, o time inglês não desceu para o vestiário, no intervalo do primeiro para o segundo tempo”.

O médico termina: “Brasil, 1 a 0. Dizem que a Copa do Mundo se ganha nos pequenos detalhes, e nós, orgulhosos, nos sentimos também um pouco vitoriosos. E que jogada, pela esquerda, de Tostão. Fiquei orgulhoso”.

Durante o segundo tempo, percebi que o centroavan­te Roberto se preparava para entrar. Só podia ser em meu lugar. Naquele instante, apareceu uma bola, por acaso, e eu, possesso, tentei uma jogada individual, a última chance, até o gol. Fui cercado, fiquei sem ângulo e, de costas para o gol, quase caindo, passei, com a perna direita, para Pelé, sem ver. O Rei a dominou e deu para Jairzinho estufar as redes. Pouco tempo depois, Roberto entrou em meu lugar.

Tenho a convicção de que a iminente entrada de Roberto foi um fator decisivo para a jogada e o gol. Muitas decisões, no futebol e na vida, são movidas também por impulsos, por desejos emocionais e por um saber que antecede ao pensamento.

Após a vitória, em um jogo equilibrad­íssimo, percebi, pelas conversas entre os jogadores e Zagallo, que eu tinha garantido meu lugar e que dificilmen­te eu seria substituíd­o. Tinha ainda a certeza de que, depois de vencer os campeões do mundo, o Brasil passava a ser um dos favoritos ao título. Hoje, penso que, se o Brasil tivesse enfrentado a Inglaterra na semifinal ou na final, nossa superiorid­ade seria nítida, pois o time evoluía a cada partida.

Pelé se preparou muito para a Copa. Ele queria encerrar a carreira na seleção com uma grande conquista, individual e coletiva, para ninguém ter mais dúvidas de que ele era o melhor de todos os tempos.

José Miguel Wisnik, em seu belo livro “Veneno Remédio”, escreveu: “Pelé parece funcionar em uma frequência diferente da dos demais jogadores, como se ele tivesse mais tempo para pensar e ver o que se passa, assistindo em câmera lenta ao mesmo jogo do qual está participan­do em altíssima velocidade, enquanto outros, em torno dele, parecem estar assistindo ao jogo em altíssima velocidade e jogando em câmera lenta”.

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