Folha de S.Paulo

Ínfimas ações não nos absolvem

‘Nada pode ser mudado enquanto não for enfrentado’

- Maíra Dvorek Atriz e aprendiz de roteiro e escrita

Em se tratando de racismo, o branco ocupa um lugar permissivo. Ao adquirir a consciênci­a da obrigação de ser antirracis­ta, ele não torna isso uma prática ampla e diária. Gerar empregos ou se recusar a ir ao clube frequentad­o só por brancos é a ponta de um iceberg muito maior.

Um dia, ouvi um conselho à minha observação: “Os pretos que estão no lugar onde você está, estão se divertindo ou trabalhand­o?”. Percebi que eu, amante dos escritos de James Baldwin (autor da frase “Nem tudo o que enfrentamo­s pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado enquanto não for enfrentado”, citada no subtítulo deste artigo), fã de jazz, neta de judeus e pretos, anulara qualquer tipo de reflexão apoiada na concretude da minha pele branca.

Não tenho eu adotado a prática diária do não racismo. Quando me dou conta disso, sinto uma vergonha que não absolve nem zera essa herança repulsiva. Minha consciênci­a política se dá pela metade. Sei do racismo, li Martin Luther King e aprendo com Spike Lee. O que eu faço com tudo isso? Nada.

Por ser judia e reconhecer semelhança­s nos holocausto­s a que os povos africanos e judeus foram submetidos, e não ser assim de todo má pessoa, sempre me senti absolvida do rótulo de racista. No entanto, um sentimento de culpa sempre me atormentou. Não a culpa daquele que é autor —uma culpa bem pior, daquele que é conivente. Esse abismo entre a admiração do conceito da luta antirracis­ta e sua prática diária me fizeram reconhecer esse desastroso lugar de conivência.

Ao assistir à morte de George Floyd chorei. Senti-me feliz ao ver os incêndios e as manifestaç­ões. Achei que essa alegria se atribuía a uma sensação de vingança. Agora, ao escrever, vejo que não era isso. Era sentimento de absolvição. O grito daqueles manifestan­tes brancos e pretos era meu também. Eu saíra do lugar de conivência.

Mas será que não sou conivente mesmo? O que fiz na prática após a morte de João Pedro? Assinar abaixo-assinado contra a federaliza­ção do caso Marielle? É preciso que o branco não sinta que essas ínfimas ações o absolvem. Nós, brancos, temos uma dívida, e o fato de ela ser ancestral faz com que não nos cause estranheza.

O racismo diário, feito de pequenas ações, excluído da barbárie explícita, não nos comove. Praticamos “a banalidade do mal” conceituad­a por Hanna Arendt. Nossa conivência nos equipara aos algozes dos campos de concentraç­ão que, no julgamento de Nuremberg, diziam “só cumprir ordens de superiores”.

O leitor branco concluirá que estou exagerando. Mas o que aconteceri­a se o antirracis­mo fosse uma prática diária de todos que se julgam não racistas? E se saíssemos do lugar de somente assinar manifestos?

O que há na luta contra o racismo que ameaça tanto o branco? Alienação como desculpa não me convence. Falta de empatia também não.

Com todo o respeito aos meus irmãos brancos, concluo que todos que silenciam se tornam racistas.

O fim do racismo não é uma luta restrita aos pretos. É uma luta de uma mãe branca que ensina ao seu filho que Zumbi é um herói. E a exemplo do líder quilombola, a luta não deve se restringir ao campo das ideias.

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