Folha de S.Paulo

Sim, somos racistas

História não pode ser usada eternament­e para justificar imobilismo da mídia

- Flavia Lima

Em uma semana, a morte de George Floyd, assassinad­o por um policial nos EUA, fez muito mais pelo debate na imprensa brasileira acerca do racismo do que ela mesma se dispôs a fazer em décadas.

Jornais e canais de tevê deixaram, ainda que por alguns dias, imagem embranquec­ida do país que sempre sustentara­m e incluíram apresentad­ores, repórteres, analistas e acadêmicos negros na discussão.

Desde que a morte de um homem negro por um policial branco provocou manifestaç­ões crescentes nos EUA, a cobertura da imprensa brasileira caminhava para entregar mais do mesmo: imagens de breve comoção e pouco interesse em fomentar o debate.

Além disso, o foco parecia se deslocar para os episódios de violência dos protestos, encobrindo o que move as manifestaç­ões —o racismo que mata homens, mulheres e crianças negros com um joelho na garganta, um tiro nas costas ou descaso dentro de um elevador.

A persistênc­ia e o tamanho dos atos, somados a um poder maior da audiência que se faz ouvir pelas redes sociais, levaram a imprensa a ampliar a discussão. E, em meio a uma sucessão de saias justas, os veículos se viram obrigados a responder às críticas.

Entre várias reportagen­s sobre o tema, a Folha, num bom episódio do podcast Café da Manhã, recorreu ao professor Thiago Amparo. É preciso lembrar que Amparo, ao lado de Djamila Ribeiro, é um entre cerca de dez pessoas negras de um total de quase 200 colunistas de todo o jornal.

As contradiçõ­es, no entanto, ficaram mais claras nos canais de televisão —lugar onde o racismo pode ser visualizad­o.

Convidada a falar na CNN, a ex-consulesa da França no Brasil, Alexandra Loras, lembrou na terça-feira (2), ao vivo, que uma emissora que se dispõe a fazer um debate sobre racismo conduzido pelo âncora William Waack deveria, também, estender o convite a especialis­tas negros, que podem discutir o tema de modo mais aprofundad­o e sob uma perspectiv­a antirracis­ta.

Loras foi educada ao reagir ao que parecia ser provocação. Waack foi desligado da Globo após vazamento de vídeo que mostra o apresentad­or, irritado com uma buzina, dizer que aquilo era “coisa de preto”.

No mesmo dia, a GloboNews decidiu propor aos jornalista­s que diariament­e costumam dar opinião no programa Em Pauta um debate sobre o racismo no Brasil. Um internauta ironizou a imagem da equipe toda branca, e o post viralizou.

Após o acontecido na terça com Loras na CNN Brasil, o volume de acadêmicos, artistas e ativistas negros entrevista­dos nos dias seguintes pelo canal subiu considerav­elmente.

Já a GloboNews decidiu reformular a edição de quartafeir­a (3) do programa, com direito a mea-culpa e convocação de quase todas as principais jornalista­s negras do grupo: Zileide Silva, Flávia Oliveira, Maria Júlia Coutinho, Aline Midlej e Lilian Ribeiro.

Antes de passar o comando do programa a Heraldo Pereira, disse o apresentad­or Marcelo Cosme: “A Globo tem a diversidad­e como um valor e se orgulha dos profission­ais negros que tem em frente às câmeras e por trás delas. Mas, por razões históricas e estruturai­s de nossa sociedade, também na Globo, os colegas negros ainda não são tantos quanto desejado”.

A emissora poderia ser acusada de oportunism­o, mas se adiantou a isso ao anunciar que Zileide Silva e Flávia Oliveira passariam a fazer parte do grupo fixo do Em Pauta.

A ideia parece ter dado tão certo que, na sexta-feira (5) à noite, o Globo Repórter repetiu o programa na tevê aberta.

O que vimos ao longo da semana na imprensa brasileira foi um certo esforço, obviamente válido, para responder a uma questão nunca abordada seriamente —o racismo da sociedade brasileira e a falta de profission­ais negros em veículos de comunicaçã­o.

Os episódios revelaram despreparo para lidar com a falta de diversidad­e nas equipes e com o próprio racismo —pela primeira vez vi jornalista­s (brancos) sem saber o que fazer com o monopólio de opinião e de imagem que sempre detiveram.

Mas esses episódios também deixaram claro que, havendo vontade, recursos humanos e audiência não faltam.

Se veremos mudanças mais profundas nas Redações, ainda é muito cedo para dizer.

Mas deveria estar claro o quão importante é termos profission­ais com experiênci­as distintas participan­do de todas as etapas da produção jornalísti­ca e falando também de política, economia, saúde e segurança pública.

É certo que razões históricas e estruturai­s nos trouxeram ao lugar em que estamos, mas elas têm sido descortina­das já há algum tempo e, portanto, não podem ser usadas eternament­e como justificat­iva para o imobilismo da mídia. Sob o risco de ter que reprisar programas como o feito com as jornalista­s negras não uma, mas centenas de vezes.

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