Folha de S.Paulo

Candidatur­a de responsáve­l por transição na Bolívia é algo insólito

Ex-presidente se apresenta para nova eleição como opção moderada em país polarizado

- Carlos Mesa Sylvia Colombo

O ex-presidente da Bolívia Carlos Mesa, 66, faz a campanha eleitoral mais longa de sua vida. Candidato à Presidênci­a no pleito de outubro de 2019, anulado após suspeitas de fraude, concorre outra vez ao cargo.

Como a candidatur­a para a votação do ano passado foi definida nas primárias de 2018, Mesa está há quase dois anos no mesmo ciclo eleitoral.

Um ciclo muito atípico, aliás. Oficialmen­te, o primeiro turno deu a vitória ao então presidente Evo Morales, mas o resultado foi contestado tanto por Mesa quanto por organismos internacio­nais.

A incerteza política, gerada pela renúncia de Evo após pressão dos militares, tornouse surto social com manifestaç­ões nas ruas de todo o país.

A eleição acabou cancelada, e o poder ficou de modo interino com Jeanine Añez, que depois de meses marcou novas eleições para maio passado.

Vieram então a pandemia e um desentendi­mento entre partidos e o novo tribunal eleitoral da Bolívia. O impasse só foi resolvido por meio de um acordo, na semana passada.

Anova votação foi marcada para 6 de setembro, quase um ano após a eleição original.

“Sigo firme com meus valores e crítico em relação aos dois lados da polarizaçã­o que

vem fazendo tanto estrago ao país. De um lado o grupo de Evo Morales, e, de outro, o de Jean in eÁñez”,af irma o centro-esquerdist­a Mesa por videoconfe­rência .“Quero sera opção moderada e séria dessa eleição.” * O senhor apoiou, no início, o governo de Jeanine Añez, mas se mostrou contra a candidatur­a dela à Presidênci­a. Por

quê? Desde antes da pandemia considero a candidatur­a da presidente não apenas um erro como algo insólito. Demos apoio porque ela assumiu a responsabi­lidade de garantir o processo eleitoral. Isso era tudo o que deveria fazer. Apresentar-se depois como candidata foi uma incongruên­cia. Não conheço um país democrátic­o com um sistema de transição ordenado que permita algo assim. O candidato de Evo Morales, Luis Arce, reclama de não poder fazer campanha devido à quarentena, enquanto Añez não sai da TV. O sr. pensa o mesmo? Sim, a presidente faz uso injusto da máquina estatal em sua campanha. E nesse ponto segue a mesma linha de Morales quando estava no cargo. Ela, por exemplo, aparece pessoalmen­te num comercial da TV estatal explicando aos cidadãos como devem ir ao banco retirar o bônus especial para esse período de emergência. Isso

mostra como está usando a luta contra o coronavíru­s em favor de sua campanha. Eu venho cumprindo rigorosame­nte a quarentena. Minha única forma de fazer campanha tem sido via redes sociais. O senhor crê que Evo está se portando de maneira democrátic­a nesse processo?

Morales nunca teve um espírito democrátic­o. Ele enfraquece­u a democracia boliviana. Quando tinha respaldo popular majoritári­o, aplaudia a democracia, mas, quando deixou de tê-lo, não hesitou e realizou fraudes. No momento mais duro da atual crise, quando a Bolívia vivia dias de distúrbios sociais, Morales instigou, do exílio, que estradas fossem fechadas e cidades, bloqueadas por militantes.

Isso causou desabastec­imento e sofrimento à população. Com o coronavíru­s, os ativistas do MAS [partido Movimento para o Socialismo] bloquearam a entrada de caminhões que recolhem lixo em Cocha bamba. Acidade ficou mais de uma semana sema possibilid­ade de recolher lixo. Esse exemplo é muito ilustrativ­o de como ele não vem sendo um ator democrátic­o nesse período difícil. Ainda não houve uma apuração dos atos de repressão ocorridos depois da chegada de Añez ao poder. Como vê isso? É certo que houve abusos, e com perda de vidas humanas,

o que é muito grave. Mas há que se entender, também, que os primeiros 15 dias de seu governo foram muito complicado­s. Estou de acordo que se deva fazer uma investigaç­ão profundada­s responsabi­lidades, mast ambé mé preciso entender que foram dias difíceis, e não atuar com dureza poderia ter resultado num saldo negativo ainda maior. Mas as medidas duras não se resumiram a esses 15 dias. E os ataques à liberdade de expressão? Issoédef ato grave. Odec retoque buscava impedira desinforma­ção sobre temas de saúde foi um grave avanço contra o direito ase informar e contra a liberdade de expressão. É uma coisa positiva que tanta gente, dentro e fora, tenha se manifestad­o contra isso, o que causou o recuo do governo. A pandemia expôs um problema do sistema de saúde que

já existia? Evo Morales nos contou uma grande mentira ao dizer que deixou o país em boas condições na área de saúde. Essa pandemia mostra que não temos nem aba semínima. P orou trolado, o atual governo semostra pouco transparen­te em seus investimen­tos no combate ao coronavíru­s. E ineficient­e, porque, apesar da longa quarentena, não há mais leitos, mais respirador­es, mais unidades de UTI. Estamos com números altos em comparação a países das

nossas dimensões e população. Depois, tema corrupção. Houve o escândalo que resultou na prisão de um ministro da Saúde, o que confirma que a gestão toda da pandemia está sendo lamentável. Como se apresentar como um candidato moderado num país tão polarizado? Mantendo nos salinha de conduta inalteráve­l. Aforçada minha prop os taéa de não me mo verde acordo coma direção que o vento sopra. Trato de acompanhar de modo crítico o governo da vez. Em 2019, isso se traduziu em votos. Se não houvesse fraude, haveria um segundo turno, e tínhamos chance de vencer. O mesmo ocorrerá agora, pois trabalhamo­s para ter o voto de centro e dos que não querem nem um lado nem outro. Como o sr. vê a relação com os outros países da região e, especifica­mente, com o Brasil?

O grande erro de Morales e de Añez foi terem ideologiza­do as relações internacio­nais. Isso, que não ocorre só na Bolívia,éa razão deter levado a América do Sul ao desastre da diáspora. O presidente Bolsonaro foi eleito pelo voto popular. Tenho diferenças, critérios distintos, mas reconheço sua legitimida­de. E o mesmo digo de Alberto Fernández, da Argentina. Não tem comportame­nto adequado de um chefe de Estado. Porém, o respeito, porque é um presidente democrátic­o. Espero ter uma boa relação com ambos, que são os presidente­s dos nossos principais vizinhos. Um chefe de Estado precisa deixar opiniões pessoais num segundo plano, debaixo dos interesses do país. O senhor manteria o interesse da Bolívia de se transforma­r em membro pleno do Mercosul? Sim, sou um fanático da integração. Embora no caso do Mercosul tenhamos uma situação difícil devido às marcadas diferenças entre Bolsonaro e Fernández. Mas não sou eu quem deve dar lições a eles. Creio que brasileiro­s e argentinos deveriam cobrar que seus líderes se entendam.

“Evo Morales nos contou uma grande mentira ao dizer que deixou o país em boas condições na área de saúde. Essa pandemia mostra que não temos nema base mínima

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Vice de Gonzalo Sánchez de Lozada, o jornalista e historiado­r assumiu a Presidênci­a após ele renunciar, em 2003. Governou até 2005, com Evo como adversário. Ficou em 2º lugar na eleição de 2019, anulada por suspeita de fraude.
Carlos Mesa, 66 Vice de Gonzalo Sánchez de Lozada, o jornalista e historiado­r assumiu a Presidênci­a após ele renunciar, em 2003. Governou até 2005, com Evo como adversário. Ficou em 2º lugar na eleição de 2019, anulada por suspeita de fraude.

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