Folha de S.Paulo

Itamaraty pretende lançar aliança com Washington e Tóquio

- Ricardo Della Coletta

Em um novo gesto anti-China, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, trabalha para lançar uma aliança estratégic­a com Estados Unidos e Japão para defender valores comuns na Ásia e na América Latina.

O plano —um diálogo trilateral de alto nível dos três países— foi apresentad­o no ano passado pelos japoneses, que viram no alinhament­o do governo Jair Bolsonaro com os EUA uma oportunida­de para propor a ideia ao Itamaraty.

Segundo disseram interlocut­ores, Ernesto abraçou com entusiasmo o projeto, embora tenha sido alertado por subordinad­os que a concretiza­ção desse fórum será visto pela China, inevitavel­mente, como uma provocação.

Em um dos primeiros esboços da nova aliança trilateral, de acordo com relatos feitos à Folha, o governo do Japão ressaltou que compartilh­a com EUA e Brasil valores comuns, como a defesa da democracia e do livre mercado.

A proposta ganhou corpo, e a expectativ­a de Ernesto é lançá-la nos próximos meses.

A preocupaçã­o levantada por diferentes setores do Itamaraty é que os EUA, no plano global, e o Japão, no regional, são hoje os maiores antagonist­as do governo chinês.

Ao aceitar integrar um fórum de diálogo político com esses dois atores, o Brasil seria levado a assumir posições sobre o delicado jogo de poder do Pacífico que desagradar­iam ao maior parceiro comercial do país.

Só em relação ao agronegóci­o, a China comprou US$ 11,85 bilhões (R$ 58,84 bi) em produtos brasileiro­s no primeiro quadrimest­re de 2020, segundo dados do Ministério da Agricultur­a.

Japoneses e americanos também são críticos do que consideram a presença cada vez mais agressiva da China na América Latina, seja como compradora de commoditie­s e investidor­a em projetos de infraestru­tura, seja pelo apoio político à ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela.

Existe o receio de que esses debates também entrem na pauta da nova aliança, forçando o Brasil a abordar assuntos que podem criar rusgas com os chineses.

Outro assunto que interlocut­ores consideram que EUA e Japão tentariam empurrar para dentro do diálogo trilateral é segurança da informação.

Os dois países dizem que a empresa chinesa Huawei não deveria fornecer equipament­os para redes de 5G, e os americanos pressionam o

Palácio do Planalto para que o Brasil siga o mesmo caminho, em um novo flanco de disputa com Pequim.

A iniciativa de um diálogo trilateral articulada entre americanos e japoneses não é inédita.

Ambos os países têm alianças lançadas com Índia e Austrália. Nesses casos, são realizados encontros e contatos para discutir diversos assuntos, como ampliação do comércio e segurança marítima na região do Indo-Pacífico.

No pano de fundo dessas articulaçõ­es, é constante a preocupaçã­o com o avanço mundial de Pequim.

Procurada, a Embaixada do Japão em Brasília disse que não comenta o assunto. “Não há nada para poder responder até o momento. Também não está definida a realização do diálogo em questão”, respondeu.

A Folha questionou a Embaixada dos EUA, mas não obteve resposta. O Itamaraty tampouco respondeu.

A relação da administra­ção Bolsonaro com a China é um dos principais pontos de divergênci­a entre as chamadas alas pragmática e ideológica do governo.

Enquanto o vice-presidente, Hamilton Mourão, e os Ministério­s da Economia e da Agricultur­a tentam evitar bolas divididas com os asiáticos, Ernesto, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSLSP) —filho do presidente— e o assessor especial para Assuntos Internacio­nais, Filipe Martins, seguem a linha de Donald Trump de enfrentame­nto com Pequim.

Após meses de disputa, o lado pragmático parecia ter imposto sua visão no fim do ano passado, mas a eclosão da crise do coronavíru­s deu novo impulso para os ideológico­s.

O momento mais tenso neste ano ocorreu em março, após Eduardo ter afirmado em suas redes sociais que o governo chinês era culpado pela pandemia.

“Quem assistiu a Chernobyl [série sobre o acidente nuclear de Tchernóbil] vai entender o que ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavíru­s e a ditadura soviética pela chinesa. Mais uma vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução”, disse o filho do mandatário na ocasião.

A manifestaç­ão gerou uma dura reação do embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, que acusou Eduardo de promover um “insulto maléfico contra a China e o povo chinês”.

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