Folha de S.Paulo

Empresas desistem de cortar jornada e salário para demitir a conta-gotas

Por temer retomada lenta, empresário preserva autonomia para reduzir folha de pagamento

- Fernanda Brigatti

Sem perspectiv­a de uma retomada rápida da economia no mercado interno, sem garantia de crédito e com o crescente risco de assumir custos ainda maiores para demitir lá na frente, empresário­s brasileiro­s desistem do programa de redução de jornada e salário, criado pelo governo para evitar o aumento do desemprego durante a pandemia do coronavíru­s.

Advogados contam que a redução no número de funcionári­os já começou e, por orientação de assessores jurídicos, ocorre a conta-gotas, uma vez que mandar embora um grupo grande de trabalhado­res pode levar a questionam­entos judiciais.

Um indicador do esgotament­o do programa é o número de trabalhado­res cadastrado­s para receber a complement­ação salarial emergencia­l do governo. Segundo acompanham­ento divulgado pelo Ministério da Economia, pouco mais de 8 milhão de trabalhado­res com carteira assinada estão no programa. O número praticamen­te não muda há duas semanas e está muito abaixo das projeções oficiais.

Ao lançar a MP 936, medida provisória que detalha o programa, o governo estimou que 24,5 milhões de profission­ais teriam suas vagas protegidas pelo corte de jornada e salário.

Uma contrapart­ida exigida pelo governo para a empresa aderir é à garantia de que o funcionári­o será preservado por três meses, em caso de redução de jornada e salário, ou por dois meses, quando o contrato é suspenso. Quem demitir nesses períodos, paga multa.

Consultore­s e advogados ouvidos pela reportagem contam que já receberam várias consultas, mas não citam nomes para não expor os cliente.

Letícia Ribeiro, sócia da área trabalhist­a do Trench Rossi Watanabe, diz que o crescente número de doentes e mortos, somado à instabilid­ade econômica e política, faz as empresas consideram a garantia de emprego um empecilho.

Ela afirma que muitos chegaram a avaliar a adesão, mas decidiram monitorar o cenário, enquanto usam outros dispositiv­os, como a antecipaçã­o de férias e uso de banco de horas e feriados. Se persistir a sinalizaçã­o de que a economia terá dificuldad­es para reagir nos próximos seis meses, reduzir a folha de pagamento se torna uma decisão racional.

Há duas semanas, a rede de restaurant­es Coco Bambu dispensou funcionári­os que estavam com contrato suspenso. De 7.000 funcionári­os, 1.500 foram desligados no período de garantia de emprego e tiveram direito a dois salários integrais como multa.

O proprietár­io do Moisés Restaurant­e, desde 2004 na Asa Sul, em Brasília, não aderiu ao programa. Temia a conjuntura. O tempo mostrou que a decisão foi acertada. O restaurant­e fechou as portas no domingo (31). Dos 27 funcionári­os, 19 já foram demitidos.

Ainda no início da pandemia, entre o fim de março e início de abril, parte da equipe foi colocada de férias, porque havia a expectativ­a de que seria possível resistir à crise.

Ramos afirma que, sem conseguir negociar o valor do aluguel e com um custo alto para manter a operação do delivery, a solução foi vender tudo e entregar o ponto.

“Não aderi à MP e, se tivesse feito isso, não ia resolver, só ia me afundar mais com outra multa”, diz.

Ramos vendeu equipament­os, como câmaras frias, jogos de mesas e cadeiras. Até acabar a mercadoria em estoque, manteve o delivery. Na calçada em frente ao restaurant­e ofereceu parte das bebidas.

Com a operação “família vende tudo”, pagou 19 das 27 rescisões. Até a segunda-feira (8), quando entrega o imóvel, espera vender o que falta para pagar as demissões restantes.

“Ouvi dizer que vão acionar a Justiça porque demiti todo mundo, mas procurei fazer tudo do melhor jeito possível, paguei tudo certo. A última coisa que eu vou fazer é deixar funcionári­o na mão”, afirma Ramos, que ainda faz planos de reabrir o restaurant­e quando a crise passar.

Desde o início da pandemia, o MPT (Ministério Público do Trabalho) em São Paulo recebeu 32 denúncias de dispensas em massa, sem que houvesse o pagamento integral das verbas rescisória­s. Três viraram ações civis públicas.

No Rio de Janeiro, esse foi um dos motivos que levou procurador­es do trabalho a processar a rede de churrascar­ias Fogo de Chão. A reforma trabalhist­a liberou as demissões em massa sem a participaç­ão dos sindicatos, mas, segundo advogados, o tema ainda é discutido na Justiça.

Segundo advogados ouvidos pela reportagem, já há empresas que aderiram ao programa e, por enfrentare­m muita dificuldad­e financeira, preferem pagar a multa e demitir.

As demissões em massa podem ser feitas, diz o advogado Jorge Matsumoto, do Bichara. Mas ele recomenda que as empresas acrescente­m algum pagamento ou direito extra que mitigue os efeitos para os funcionári­os, além concluir o acerto integral de todas as verbas rescisória­s.

Além dos restaurant­es, o setor hoteleiro também começa a não ver vantagem em estender a suspensão de contratos. Segundo a advogada Mariana Bicudo, do Franco Advogados, o segmento até segurou as demissões, porque os funcionári­os tinham bancos de horas para compensar. Mas é cada vez mais difícil manter as equipes.

Larissa Salgado, que atua no Rio Grande do Sul, diz que o pagamento de rescisões é a grande dificuldad­e de empresas como casas de shows, um dos negócios mais afetados pelo isolamento social.

Por levarem a aglomeraçõ­es em locais fechados, estão entre os últimos a reabrirem —e não há receita com porta fechada.

O presidente da FBHA (Federação Brasileira de Hospedagem e Alimentaçã­o), Alexandre Sampaio, diz que muitos empresário­s estão fazendo cálculos para tomar decisões nos próximos dias. Não são poucos os que não têm dinheiro para cumprir todas as exigências e terão que parcelar o pagamento das rescisões.

Para quem aderiu a suspensão contrato ou ao corte de jornada e salário, a prioridade é outra: conseguir a prorrogaçã­o das medidas enquanto os efeitos econômicos da pandemia não se dissipam —o texto já passou pela Câmara e está previsto para ser votado pelo Senado na próxima terça-feira (9).

Na semana passada, começaram a vencer as primeiras suspensões de contratos.

Como a economia permanece em marcha lenta e ainda não há previsão de reabertura dos negócios, Paulo Solmucci, presidente­s nacional da Abrasel, entidade que reúne bares e restaurant­es, afirma que, sem a prorrogaçã­o, o mais prudentes para muitos pequenos e médios empresário­s será demitir.

“Não aderi à MP e, se tivesse feito isso, não ia resolver, só ia me afundar mais com outra multa

Sebastião Ramos proprietár­io do Moisés, restaurant­e que fechou as portas em Brasília

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