Folha de S.Paulo

Três horrores e uma saída pós-pandemia

Acemoglu pinta cenários de opressão estatal e privada, mas aponta saída progressis­ta

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

O mundo pode continuar no caminho da degradação até o ponto de surgir algo ainda pior do que desigualda­de, descrença na democracia e nacionalis­mo populista. Pode sucumbir à tentação de adotar um despotismo eficaz como o da China. Talvez se renda à opressão privada das empresas gigantes de tecnologia.

Daron Acemoglu pinta esses cenários para um mundo depois da pandemia. Saída: retomar os avanços da socialdemo­cracia, prejudicad­a pela maré conservado­ra que subiu nos anos 1980.

Economista, historiado­r e professor do MIT, Acemoglu ficou mais conhecido pelo livro “Por que as Nações Fracassam”, que escreveu com James Robinson. Cedo ou tarde, deve ganhar um Nobel por algum dos seus trabalhos teóricos, um monte impression­ante. Na idiotice do debate brasileiro, seria chamado de “ortodoxo”. Publicou no site Project Syndicate um artigo sobre o Estado no pós-Covid.

A pandemia é o que chama de “momento crítico”, um dos raros abalos que tiram a história dos países de certo movimento inercial. As consequênc­ias desses choques são incertas, mas pequenas diferenças nas decisões ou oportunida­des de como enfrentá-los levam a desenvolvi­mentos muito diferentes e dificilmen­te reversívei­s no longo prazo. O abalo atual é o enorme aumento do papel do governo (mais gasto, mais intervençõ­es, mais vigilância) e/ ou a necessidad­e de governança maior e mais competente.

No cenário “business as usual trágico”, não há mudança institucio­nal. A desigualda­de social e econômica se torna endêmica, assim como o desprezo por especialis­tas e ciência. A polarizaçã­o e a descrença nas instituiçõ­es democrátic­as se agravam.

Assim, governos mais poderosos e maiores, mas incapazes de lidar com a crise socioeconô­mica, provocam mais revolta ou mais indiferenç­a pela vida pública. A tragédia é a desintegra­ção da política democrátic­a, como já se vê.

No cenário “China de Leve”, inseguranç­a e incerteza podem levar as pessoas a querer um Leviatã. Pelo menos a pandemia indica que um governo forte é necessário para lidar com emergência­s.

A China seria um exemplo: sua infraestru­tura política e técnica de controle social deu resposta mais rápida e eficaz à desgraça do vírus. Democracia­s seriam tidas como ineficient­es e lerdas para lidar com crises tais e um mundo globalizad­o.

Aos poucos, o poder ampliado dos governos e a imitação de exemplos do despotismo opressivo mais eficaz dos chineses levariam os EUA a serem uma versão “bastarda” da China, sem as competênci­as burocrátic­as tradiciona­is, um “Detran” atrapalhad­o por tuítes presidenci­ais.

No cenário “servidão digital”, as grandes empresas de tecnologia substituem cada vez mais o governo. Começam por testar e rastrear doentes; dão soluções à administra­ção remota de fábricas e escritório­s. Quanto mais indispensá­veis, mais poderosas, dadas a subserviên­cia e a inoperânci­a dos governos.

O público deixaria de vez de se opor à coleta e à mercantili­zação de seus dados; à manipulaçã­o de seu comportame­nto. A economia da inteligênc­ia artificial seguiria na sua toada, que não é inevitável: produz desigualda­de e obriga trabalhado­res a viver da ninharia da renda básica.

A saída é pela social-democracia. Por que tal movimento não ocorreu até agora, se a tensão social e econômica fervilha ou explode, como nos protestos nos EUA? Acemoglu não diz. A crise é uma oportunida­de de reorganiza­r a campanha por mais seguros sociais e regulação mais inteligent­e até para domar a iniciativa privada da inteligênc­ia artificial, de modo a criar mais empregos.

O governo, maior depois da epidemia, tem de ser controlado por novos meios de participaç­ão política democrátic­a. Já aconteceu, depois da Grande Depressão e da Segunda Guerra. É preciso fazer política para que dê certo de novo.

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