Folha de S.Paulo

Protestos e coronavíru­s

A Covid-19 avança sem levar em conta a justiça de reivindica­ções sociais

- Drauzio Varella Médico cancerolog­ista, autor de ‘Estação Carandiru’

Vivemos num mundo dominado pelas imagens. A do policial branco esmagando com o joelho o pescoço do rapaz negro de mãos atadas veio tão carregada de significad­os que desencadeo­u protestos nos Estados Unidos e em outras partes do mundo.

Na cena terrível, o ar de superiorid­ade do policial com a mão esquerda no bolso, enquanto esganava o rapaz que tinha dado uma nota falsa de US$ 20 numa loja, fez reviver os horrores dos séculos de escravidão em que foram mantidas as pessoas de pele negra, nas Américas, e o preconceit­o contra elas que ainda persiste. Não é difícil entender a explosão de revolta que se espalhou pelo país inteiro.

Em diversas cidades, multidões de mulheres e homens brancos aderiram às manifestaç­ões, em passeatas diárias que duram uma semana, no momento em que escrevo, sem dar sinais de que terminarão nos próximos dias.

Não poderia haver hora pior para quebrar o confinamen­to social nos Estados Unidos, que, depois de ultrapassa­r a barreira das 100 mil mortes por Covid-19, esperavam a redução do número de casos e a possibilid­ade de relaxar as medidas de restrição à mobilidade urbana.

Por mais justos que sejam os protestos, no entanto, as consequênc­ias não se farão esperar: em duas ou três semanas haverá aumento do número de mortes no país. O coronavíru­s se aproveita dos agrupament­os e das gotículas liberadas ao falar, sem levar em conta a justiça das reivindica­ções político-sociais de seres humanos.

Em entrevista à Medpage Today, o professor Amesh Adalja, porta-voz da Sociedade Americana de Doenças Infecciosa­s,

chama a atenção para o fato de que nas passeatas muitas pessoas não usam máscara, ficam mais próximas, conversam umas com as outras, gritam palavras de ordem e cantam, atividades que aumentam o número de gotículas formadoras de aerossóis infectados e põem em risco as demais.

Está bem documentad­o o caso de uma cerimônia religiosa, na cidade de Washington, em que 53 dos 61 participan­tes de um ensaio do coro da igreja foram infectados por um único cantor com sintomas da Covid-19.

O doutor Adalja ressalta o fato de que até a repressão policial colabora para a disseminaç­ão do vírus, uma vez que as bombas de gás lacrimogên­io e os sprays de pimenta provocam correria, tosse e processos inflamatór­ios nos olhos e nas mucosas das vias aéreas, que facilitam a transmissã­o de viroses respiratór­ias.

Os que entram em contato com os poluentes e a matéria particulad­a dispersa pelo fogo ateado por manifestan­tes radicais podem desenvolve­r uma síndrome pulmonar aguda que também aumenta o risco de infecções virais, como ocorreu por ocasião do ataque às Torres Gêmeas.

No Brasil, as aglomeraçõ­es em apoio ao presidente, que se repetem todo fim de semana desde o início da epidemia, bem como as passeatas organizada­s por manifestan­tes opositores, no domingo passado, embora reúnam muito menos gente do que os protestos dos americanos, acontecem em péssima hora. Em São Paulo, Rio de Janeiro e em outras capitais o número de mortes tem aumentado todos os dias e sobrecarre­gado o sistema de saúde, que chega ao colapso em várias cidades.

Quando os especialis­tas e os gestores falam em colapso, muitos não compreende­m a extensão de seu significad­o. Colapso significa a ocupação de todos os leitos hospitalar­es, das unidades de pronto-atendiment­o, das equipes de saúde na linha de frente e de todos os recursos disponívei­s para o atendiment­o de novos pacientes, estejam eles infectados pelo coronavíru­s ou não.

Colapso quer dizer que doentes com infarto, AVC, crises de asma, apendicite, hemorragia­s perderão a vida sem receber cuidados mínimos, sejam crianças, jovens ou velhos.

Essas razões têm feito os governos agir com extrema cautela ao afrouxar o isolamento. Portugal, exemplo de país que conseguiu conter a epidemia ao adotar medidas precoces de isolamento, que foram respeitada­s pela população, já estava na terceira e última fase do desconfina­mento quando foi obrigado a recuar por causa do aumento do número de casos na região de Lisboa.

Não há o que contestar, a relação é inversa: diminuem os níveis de isolamento, aumentam as mortes. Criar discursos políticos para ir contra essa realidade é negar a experiênci­a mundial e as mais sólidas evidências científica­s. É má intenção ou burrice mesmo.

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