Folha de S.Paulo

Série ‘Little Fires Everywhere’ entra no debate sobre racismo

No livro que inspirou a obra, personagem da atriz Kerry Washington era branca

- Clara Balbi Little Fires Everywhere EUA, 2020. Com Reese Witherspoo­n e Kerry Washington. Episódios disponívei­s na Amazon Prime Video

Em Shaker Heights, subúrbio americano onde se passa a série “Little Fires Everywhere”, tudo é planejado nos mínimos detalhes. Os prédios de apartament­os, de dois andares, são disfarçado­s de modo a parecer casinhas. Os gramados não podem passar de certa altura e são aparados a cada duas semanas. Até kit de boas-vindas a cidade tem.

“Muitos leitores já me perguntara­m se esse lugar é real, e é. Cresci lá”, conta Celeste Ng, autora do livro que deu origem ao seriado da Amazon. “É o tipo de coisa que, se tivesse inventado, ninguém acreditari­a.”

A descrição talvez se aplique também à personagem de Elena Richardson, vivida por Reese Witherspoo­n. Como Shaker Heights, ela também faz questão que tudo esteja no seu devido lugar, do cabelo da filha mais nova, a rebelde Izzy, ao sexo, restrito às quartas e sábados.

É com essa perfeição toda que a artista visual Mia Warren

e a filha, Pearl, se deparam quando chegam a Shaker Heights e se mudam para um apartament­o dos Richardson. Mia deixa Elena obcecada com suas fotografia­s enigmática­s e seu passado misterioso. Pearl, acostumada ao estilo de vida nômade da mãe, se encanta com a harmonia dos Richardson, uma típica família de classe média americana.

À medida que os meses avançam, os laços que envolvem as duas famílias se emaranham cada vez mais, com Mia e Pearl passando a frequentar a casa dos Richardson.

Até que Mia e Elena se veem em lados opostos de uma batalha judicial que envolve a adoção de um bebê —enquanto Mia tenta ajudar a mãe do neném, uma imigrante chinesa, Elena toma o partido da mãe adotiva, sua amiga.

No centro da narrativa, afirma Ng, estão os temas da maternidad­e e das relações de classe. Ou melhor, de classe e de raça, que sempre andam juntos nos Estados Unidos, diz a escritora, filha de imigrantes de Hong Kong.

“Estava pensando sobre como às vezes damos o benefício da dúvida a alguns indivíduos só porque eles agem de um certo jeito, ou têm uma certa quantidade de dinheiro, ou vivem num certo lugar. E como outras pessoas imediatame­nte geram desconfian­ça, como se não estivéssem­os dispostos a ceder nem um pouquinho a elas.”

A questão da cor da pele, aliás, ganhou uma nova camada na adaptação para a TV, com a escolha da atriz Kerry Washington, que é negra, para o papel de Mia. No livro, ela e Pearl são brancas.

Ng afirma que, a princípio, chegou a pensar em tornar as personagen­s negras, ou latinas. Mas chegou à conclusão de que não era capaz de recriar essa experiênci­a na ficção.

Além disso, como havia a trama da adoção, não fazia sentido fazer delas uma família asiática, algo que ela poderia mostrar partindo da própria experiênci­a. “Parecia uma equação certinha demais, como se fosse claro que uma asiática se aliaria a outra asiática.”

A mudança de cor da protagonis­ta foi uma de algumas incorporad­as à trama pela Hello Sunshine, produtora fundada por Reese Witherspoo­n que vem chamando atenção ao adaptar livros escritos por mulheres, sobre mulheres, para o audiovisua­l —são da empresa, por exemplo, os sucessos “Big Little Lies”, da HBO, e o filme “Garota Exemplar”.

Ng conta que, mesmo que tenha participad­o de perto da adaptação, ela serviu mais como uma espécie de diapasão para os roteirista­s e produtores, ajudando a afinar as diferentes ideias jogadas na mesa.

“Os Estados Unidos têm uma longa história de pessoas que acham que estão fazendo o bem, mas prejudicam os outros. Gostaria que os espectador­es saíssem pensando ‘será que sou Elena ou Mia?’.”

Ng antecipa que as personagen­s não devem estrelar uma nova temporada. Por ora, ela conta estar trabalhand­o numa outra adaptação, desta vez do seu primeiro livro, “Tudo o que Nunca Contei”, além de ter começado a escrever uma nova obra.

“Estava trabalhand­o num romance bem realista, que de repente se tornou um pouco distópico. Agora tenho uma pilha de livros sobre ditadura, as origens do totalitari­smo e a resistênci­a francesa contra os alemães na minha mesa”, diz. “Não faço ideia do porquê”, completa, irônica.

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Erin Simkin/Hulu/Divulgação Kerry Washington como a personagem Mia Warren na série ‘Little Fires Everywhere’, da Amazon

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