Folha de S.Paulo

Leite azedo

Por mais que soe exagero retórico, ‘genocídio negro’ é realidade estatístic­a

- Angela Alonso Professora de sociologia da USP e pesquisado­ra sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to

A cena do copo de leite contaminou na velocidade da Covid-19. Inoculou as lives do presidente, da ministra da Família e do blogueiro do Terça Livre. Este último, o ex-seminarist­a Allan dos Santos, explicou: “Entendedor­es entenderão”.

Até onde o entendimen­to alcança, a referência vai além da pureza que o branco lácteo simboliza. Alude à deficiênci­a em digerir lactose, mais comum entre afrodescen­dentes.

Essa conexão se explicitou em manifestaç­ão da altright norte-americana em 2017, quando marmanjões sem camisa fizeram ato de consumo ostensivo e copioso de leite, deglutidos direto dos galões. Sites do grupo, durante o governo Obama, deram a senha para decifrar a performanc­e por meio de um poeminha: “Roses are red, Barack is half black, if you can’t drink milk, you have to go back” (rosas são vermelhas, Barack é meio preto, se você não pode beber leite, você tem que voltar). Longe de propaganda da pecuária local, o ato celebrava a supremacia branca.

A repetição do gesto aqui, onde todo o mundo se jacta de não ser racista, tem o peso de uma declaração de princípios.

A ingestão dessa poção envenenada deve ter feito Joaquim Nabuco se revirar em seu mausoléu no Recife. É que o cenário de Allan dos Santos para o consumo incluiu retrato do abolicioni­sta na parede. Maneira de equalizar liberalism­o, monarquism­o e catolicism­o do vivo e do morto. Mas, entre ambos, há um pasto inteiro de distância. Nabuco queria dividir terra e garantir direitos aos ex-escravos. O leite azedo de Allan indica bem o contrário.

Quem também anda se virando é o companheir­o de movimento abolicioni­sta de Nabuco. André Rebouças foi convocado pelas hostes governista­s como ícone alternativ­o a Zumbi e sua foto foi parar na página de abertura do site da Fundação Palmares. Rebouças mais que merece retrato e feriado nacional, mas usá-lo contra o movimento negro desonra sua memória.

O presidente do órgão e o abolicioni­sta compartilh­am a cor, mas não os predicados. Rebouças era erudito e educado. Sérgio Camargo enverga a cultura bolsonaris­ta, a dos palavrões. Nessa língua, classifico­u o movimento negro como “escória maldita”, povoada de “vagabundos”.

Essa escória de vagabundos incomoda porque denuncia o apartheid racial brasileiro. Nem aqui, nem nos Estados Unidos, o termo é corrente, como se apenas a África do Sul tivesse praticado a política sistemátic­a de submissão racial.

Trumpistas e bolsonaris­tas, cabe reconhecer, apenas escavam o padrão profundo de suas sociedades. Lá e cá, os negros perdem para os brancos em tudo: renda, escolarida­de, saúde, oportunida­des. São os que povoam as penitenciá­rias e os necrotério­s, levados por balas perdidas ou garrotes policiais.

Nos dois casos, os dados são cristalino­s, públicos e antigos. As providênci­as é que são raras. As duas sociedades têm sido muito eficientes em reproduzir, geração atrás de geração, a mesma hierarquia racial. E com consentime­nto implícito de brancos e mesmo de negros que, como Sérgio Camargo, ignoram o óbvio, por mais que ulule.

O Atlas da Violência (Ipea/Fórum Brasileiro de Segurança Pública) tem evidências da velha cantilena: em 2017, 75% das vítimas de homicídio eram negros. Entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de brancos cresceu 3%, já o morticínio de negros subiu 33%. E deve disparar com o discurso racial do governo e sua sanha em armar os “cidadãos de bem”. Por mais que soe exagero retórico, “genocídio negro” é uma realidade estatístic­a.

Os bolsonaris­tas miramse nos trumpistas. Pois bem, lá o tempo fechou. O risco de contaminaç­ão não impediu democratas de irem às ruas contra os supremacis­tas. Não é a primeira vez, houve o movimento pela abolição da escravidão e o pelos direitos civis. A essa mobilizaçã­o periódica o outro lado respondeu com Ku Klux Klan e assassinat­os de líderes negros. A escravidão lá só acabou com guerra civil. Essa é a trilha que o bolsonaris­mo inveja.

A metade trumpista tem mais orgulho que vergonha das raízes escravista­s. E nem finge. Lá como aqui, a doença crônica do extermínio de negros é realidade tão tangível quanto tacitament­e aceita. Contra a Covid-19, há um exército de pesquisado­res em busca de vacina, municiados de fundos e envoltos na esperança do mundo inteiro. O antirracis­mo não mobiliza os mesmos sentimento­s, líderes e cofres.

Os americanos têm neste ano chance de cura eleitoral. Aqui as urnas estão longe. Está cada dia mais difícil respirar —e não é só por causa das máscaras.

Contra a Covid-19, há um exército de pesquisado­res em busca de vacina, municiados de fundos e envoltos na esperança do mundo inteiro. O antirracis­mo não mobiliza os mesmos sentimento­s, líderes e cofres

| dom. Jorge Coli, Angela Alonso, Bernardo Carvalho

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil