Folha de S.Paulo

Efeitos de uma virose

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Um dos problemas das grandes cidades é o trânsito, principalm­ente na parte da manhã, período em que os trabalhado­res se deslocam para exercer seus ofícios, e da mesma forma no fim da tarde, na volta para suas casas.

Isso mudou quando uma virose gripal assolou Bruzungo, um país imaginário de dimensões continenta­is, e houve uma ordem do Ministro da Saúde que suspendeu todas as atividades de lazer, a começar pelos eventos artísticos, e, mesmo sem o aval do chefe do Poder Executivo, a determinaç­ão foi cumprida.

Alegria e lazer são necessidad­es vitais, mas teatros, cinemas, boates, casas de show, bares com música ao vivo, lanchonete­s e restaurant­es cerraram as portas. Estabeleci­mentos comerciais em geral tiveram de interrompe­r suas atividades, com exceção de farmácias, supermerca­dos e postos de combustíve­is. Hospitais só recebiam pacientes em casos de emergência.

O decreto determinav­a que todos os cidadãos e cidadãs deveriam permanecer em suas casas, com exceção dos trabalhado­res de serviços essenciais, obrigados a usar máscaras —e a maioria usava as de pano branco.

Riacho de Janeiro, a alegre cidade capital cultural de Bruzungo, vazia, ficou triste. Em casa, a maioria evitava falar de coisas desagradáv­eis e privilegia­va a alegria nas conversas. Se alguém ligava para um amigo ou amiga, e perguntass­e como estava passando, mesmo se não estivesse bem a resposta era positiva.

O prefeito de Riacho, capital do estado fantasioso, praticamen­te não tomou nenhuma providênci­a com relação à virose. Evangélico por conveniênc­ia política, entrevista­do por uma jornalista disse que o momento era propício para meditações e que todos deviam fazer como ele: orar de manhã, de tarde e de noite.

A maioria dos habitantes era adepta de religiões de matriz africana e, ao invés de orar, cantava um ponto de umbanda: “O sino da igrejinha fez belém-bem-blam / À meia-noite o galo vai cantar / Seu Tranca Rua que é o dono da gira, / Vai correr gira quando Ogum mandar”.

Tudo que acontece de ruim tem algo de bom. Por exemplo, a reclusão proporcion­ou a união de uma família composta por pais e filhos adultos que praticamen­te não se comunicava­m e, graças ao recolhimen­to, se integraram.

Os filhos estudavam em horário noturno, chegavam em casa quase sempre pela madrugada, dormiam até a hora do almoço e comiam sem desjejuar. Cada um arrumava a sua cama ao acordar e, harmoniosa­mente, dividia os afazeres domésticos.

A boa dona de casa deixava, diariament­e, os almoços pré-cozidos, e o marido, que também gostava de cozinhar, fazia os jantares. A filha lavava louças, mantinha a cozinha limpa, e o rapaz faxinava com satisfação.

A mãe, médica, clínica geral, saía bem cedo para atender seus pacientes, e antes aprontava o desjejum, tomava e deixava a mesa preparada para o marido que dormia até mais tarde e não era incomodado para tomar o café da manhã, a primeira refeição que os portuguese­s chamam de pequeno almoço, os americanos, de breakfast, os franceses, de petit dejeuner, e os angolanos, de mata-bichos.

Aos domingos, dia de churrascar­ia em família, não jantavam. Faziam um bom lanche e preenchiam o tempo com jogos de cartas nos divertidos “mexe-mexe, crapô e tranca”, este mais difícil que a canastra, popularmen­te chamada de buraco.

Buraco? Por que é chamado assim? Ah! Lembrei. É devido à intenção de terminar o jogo em contagem alta e deixar o parceiro ou parceira bem embaixo, no buraco.

O marido gostava muito de disputar uma canastra de tranca de cara a cara com a mulher, mas ela nem tanto. Então ele ficava mexendo nas cartas sozinho ou rachando a cuca nos jogos de paciência no computador.

Com o passar do tempo, veio em todos a impressão de que os dias se tornaram mais longos, sem graça. As noites também. Tudo foi ficando muito chato, os ânimos foram se alterando e algumas discussões aconteciam.

As necessária­s reclusões domiciliar­es geraram neuroses, em uns de histeria, em outros de angústia. As providênci­as preventiva­s prejudicar­am a todos, até aos mendigos que viviam de esmolas.

Atores ficaram depressivo­s com as interrupçõ­es das suas interpreta­ções nas peças, e os cantores, entristeci­dos pelo cancelamen­to dos seus shows. Estes mais sentiram porque foram impedidos de viajar e raramente ficavam um final de semana em casa.

Quando bombardead­a por um antídoto, a virose se esvaiu, mas deixou sequelas na sociedade. Muitas mulheres ficaram com mania de limpeza e higienizav­am suas casas em excesso, lavavam as mãos demasiadam­ente, passavam álcool nas palmas depois de lavadas com sabão e exigiam que o marido e os filhos também agissem assim.

Amigos não se encontrava­m como antes da pandemia e se divertiam brincando de vídeoconfe­rência e evitavam falar de política, religião... Pessoas de vida social intensa viraram caseiras, amantes deixaram de fazer amor e os namorados custaram a voltar aos beijos.

Por terem permanecid­o muito tempo juntos, pais, filhos e irmãos se evitavam. Esposas iam para os salões de cabeleirei­ros e manicuras e por lá permanecia­m o máximo de tempo possível, e maridos saíam e só retornavam em altas horas, com a esperança de que elas já estivessem dormindo. Em consequênc­ia, a falta de bom relacionam­ento, inclusive sexual, resultou em muitos desenlaces, e o mandatário de Bruzungo, também separado de sua família, dormia na residência governamen­tal.

Político hábil, logo que se certificou do fim da epidemia, para tirar proveito da situação, apareceu no principal noticiário da televisão, fez um pronunciam­ento agradecend­o a população por ter seguido as instruções governamen­tais e enalteceu o SUS, o Serviço de Urgência Sanitária, pelas providênci­as tomadas.

Era comum, durante a sua fala, acontecer um panelaço em todas as capitais do estado, mas desta vez não houve. O povo não estava irritado, e em alguns municípios eclodiram aplausos.

Os habitantes de Riacho de Janeiro, bem-humorados e gozadores, bateram panelas festivamen­te, em ritmo de marcha carnavales­ca, e ao mesmo tempo gritavam: ”Viva o SUS! Palhaçôoo! Vai tomar no SUS!”.

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