Folha de S.Paulo

NA ZONA SUL DE SP, HOSPITAL TEM VISITA DE ADEUS; NA NORTE, IMPROVISOS

Rara, ação de unidade municipal objetiva tornar luto menos traumático; UTI tem pontuação por vaga

- Artur Rodrigues e Lalo de Almeida

Pacientes de Covid-19 na UTI do Hospital Municipal do M’Boi Mirim; administra­da pelo Einstein e referência na cidade em atendiment­o na pandemia, unidade permite que famílias se despeçam de doentes cujo quadro é considerad­o terminal

“Pai, você abriu um olho para mim”, diz uma dona de casa à beira da cama do pai, um doente de coronavíru­s de 80 anos, cujo quadro é considerad­o terminal.

Cercado por cortinas, ele está em uma ala do Hospital Municipal do M’Boi Mirim, bairro da zona sul na periferia da capital, voltada para casos de cuidados paliativos.

A unidade, atualmente, é uma das que concentram casos de coronavíru­s naquela região da cidade, onde as mortes mais têm crescido nas últimas semanas.

Diagnostic­ado com a doença, que se somou a um câncer de próstata e sequelas de um AVC, o aposentado ainda trocava algumas palavras com a família até poucos dias atrás.

“Agora, a gente espera que ele esteja escutando. Mas é pouca resposta que tem, não fala, tem pouco movimento”, diz a neta do homem, uma estudante de 18 anos. “Eu me sinto muito grata por ter essa possibilid­ade de poder vê-lo, mas também é triste: gente está podendo vir porque ele está piorando cada vez mais.”

Mesmo com máscaras, protetores faciais e outras partes do traje de segurança, este tipo de visita é rara em hospitais do Brasil e do mundo. Geralmente, pacientes graves do novo coronavíru­s ficam totalmente isolados. Morrem sozinhos e, no cemitério, os familiares também são privados do velório, devido à chance de contaminaç­ão.

Inaugurado em 2008, o hospital da Prefeitura de SP no M’Boi Mirim é administra­do pelo Hospital Israelita Albert Einstein, que também gerencia o Hospital Municipal de Campanha do Pacaembu.

Devido à pandemia, o local virou referência para casos da doença na região. A UTI saiu de 20 para 220 vagas, e um novo setor foi erguido em menos de um mês com dinheiro da iniciativa privada.

Desde o início da pandemia, a unidade já atendeu 1.545 pessoas, sendo que 779 tiveram alta e 209 morreram.

Com muito mais leitos e também mais mortes do que costumava registrar, o hospital vem adotando a prática das visitas de despedida para facilitar o processo de luto das famílias em meio à pandemia de coronavíru­s e para tentar trazer maior conforto aos pacientes em seus últimos momentos de vida.

“Para alguns pacientes que a gente percebe que têm poucos dias de vida, a gente conseguiu abrir exceção para que as famílias pudessem ter a despedida, de forma muito cuidadosa. A gente disponibil­iza os EPIs, a família é orientada, tem o apoio da psicologia”, afirma a intensivis­ta Débora Carneiro, 32, que atua na área de cuidados paliativos.

“Acredito que é basicament­e essa forma de lidar com o luto que tem sido mais difícil, tanto para famílias quanto para equipes”.

As visitas duram cerca de dez minutos, costumam ter de dois a três membros da família. Parentes que integrem grupos de risco não podem participar —nesse caso, têm de seguir com videoconfe­rências. Algumas vezes, funcionári­os do hospital também leem cartas para os pacientes, mesmo que estejam intubados e inconscien­tes, situação comum entre os casos mais graves da Covid-19.

“A partir do momento que o paciente chega no pronto-socorro, esse contato físico [com os parentes] acaba. Então muitas vezes o familiar fica angustiado porque faz uma semana que o paciente está internado e ele não viu. Ele tem informação, boletim médico, mas a gente percebe que o ver às vezes proporcion­a um aconchego para o parente”, diz a psicóloga Gisele Soares, 36.

Também psicóloga no hospital, Amanda Caroliny Santos, 26, afirmou que a velocidade com que o coronavíru­s mata abreviou o tempo para assimilar a perda. Por isso, desde abril houve a adoção das chamadas de vídeo e visitas presenciai­s, o que tem sido importante para os parentes.

“Quando eles ligam depois do óbito para conversar um pouquinho, eles afirmam que tem sido de extrema importânci­a que eles possam ver a última vez aquele familiar, falar o que eles queriam falar, pedir desculpa para alguma coisa. É sempre o que fica, né? Tem sido muito positivo, apesar de muito difícil”, diz.

A maioria dos pacientes graves de coronavíru­s está intubada, mas há aqueles que, antes de entrar no procedimen­to, resolvem se despedir. Além disso, passam instruções práticas, como senhas de cartões e contas de banco. Se melhoram e acordam, se mostram muito surpresos e felizes, relata a equipe do hospital.

Nem todos os pacientes graves vão para a UTI.

O Hospital do M’Boi Mirim segue o protocolo criado pela equipe do Hospital Albert Einstein para o contexto de escassez de recursos durante a pandemia, que estabelece uma espécie de pontuação pelas vagas de UTI.

“No contexto da pandemia, se você não aplica uma lógica assim, o risco é de, quando houver indisponib­ilidade do recurso, chegar um paciente que deveria ser prioritári­o e esse recurso não estar disponível”, diz intensivis­ta Leonardo Rolim Ferraz, médico do Einstein e um dos autores do protocolo.

Rolim afirma que o critério de meramente dar a vaga a quem chegou primeiro pode causar injustiças. Por isso, o principal critério usado para a prioridade é concedêla às pessoas que vão tirar o máximo proveito da UTI, colocando-as à frente das pessoas que já se recuperari­am sem estar na unidade intensiva e das que não se recuperari­am mesmo que tivessem acesso a ela.

Estes últimos vão para o setor de cuidados paliativos, que visa dar melhor qualidade ao que resta de tempo de vida dos pacientes, um setor ocupado muitas vezes por pessoas com comorbidad­es como doenças pulmonares crônicas, doenças cardíacas e sequelas de AVC, entre outras.

O intensivis­ta diz que geralmente não se escolhe entre pacientes, mas se avalia cada a situação individual.

No entanto o artigo afirma que “se houver empate na pontuação a decisão pode basear-se no critério de estimativa de anos salvos e ser profission­al da saúde envolvido nos cuidados de pacientes de Covid-19”. Neste último caso, leva-se em conta o fato de que essas pessoas, uma vez recuperada­s, podem salvar mais vidas.

A UTI do hospital na zona sul está com 86% de ocupação, mas a diretora da unidade, a pediatra Fabiana Rolla, 45, diz que o chamado processo de escolhas difíceis independe das vagas, pois é necessário que esteja implantado quando a situação eventualme­nte aconteça.

“A Covid transforma a catástrofe pontual numa coisa permanente. Mas todo hospital tem que ter um protocolo de catástrofe, porque pode um ônibus bater em outro aqui na frente e pode chegar uma quantidade de pacientes graves que excedem sua capacidade”, diz Fabiana.

O protocolo ajuda a tirar das costas dos profission­ais a decisão sobre quem terá acesso a UTI e quem não terá. Além da pandemia, esses funcionári­os já seguem sob forte estresse por causa do risco de contraírem eles mesmos a infecção e de infectarem seus parentes.

Fabiana, por exemplo, mora com os pais idosos e duas filhas adolescent­es.

Em casa, ela só anda de máscara, atitude comum entre as pessoas que mantêm contato com familiares mesmo atuando em um hospital que tem a maioria das suas alas destinadas apenas a casos de coronavíru­s.

Outro aspecto doloroso para a equipe é ver os colegas que atuam no hospital internados ali em estado grave.

“A gente tem um técnico em enfermagem nosso em estado gravíssimo. E é um colaborado­r da própria UTI, sendo cuidado agora pelos colegas. Foi intubado pela própria equipe do plantão dele. Isso mexeu com a sanidade de todo mundo”, diz a diretora.

Outro caso, de um médico do hospital que ficou em estado grave, terminou bem. O profission­al se recuperou e já voltou a trabalhar.

Além de ver colegas escaparem da doença com alegria, os funcionári­os também costumam vibrar com as altas de pacientes comuns, principalm­ente quando se tratam dos casos mais graves.

Em um ambiente sem acompanhan­tes permanente­s com os pacientes, desenha-se uma dependênci­a muito maior dos doentes em relação aos funcionári­os.

“A gente está ali para dar esse suporte, a gente é meio familiar deles naquele momento”, diz enfermeira Andrea Carneiro, 50, que se voluntario­u para atuar contra o Covid-19 no local. “O paciente consciente é mais carente, tem mais medo, é mais inseguro.”

Quando algum deles em estado grave vai sair, a informação logo roda no grupo de WhatsApp dos funcionári­os dos vários setores, que aparecem para comemorar.

Como há muitos profission­ais evangélico­s no local, um grupo de funcionári­os, do qual alguns são antigos integrante­s de um coro hoje desativado, tocam músicas religiosas e cantam por todo o trajeto da saída do leito até o encontro com familiares.

A reportagem presenciou a saída do designer Jaime José da Costa, que ficou internado com coronavíru­s por mais de um mês em estado gravíssimo. Com muitos membros da família infectados, no período em que estava inconscien­te ele perdeu a mãe e um irmão para a a doença.

Ao sair, reencontro­u a mulher, emocionada, e recebeu muitos aplausos na recepção de todos que estavam na recepção do hospital.

“Tive que ir para a intubação, depois teve complicaçõ­es pelo fato de ficar muito tempo no hospital”, disse à Folha. “Graças a Deus, agora estou voltando para a casa.”

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Lalo de Almeida/Folhapress
 ?? Fotos Lalo de Almeida/ Folhapress ?? Pacientes com Covid-19 na UTI do Hospital Municipal Moyses Deutsch (M’Boi Mirim), referência em atendiment­o na pandemia em São Paulo; abaixo, nova ala e alta
Fotos Lalo de Almeida/ Folhapress Pacientes com Covid-19 na UTI do Hospital Municipal Moyses Deutsch (M’Boi Mirim), referência em atendiment­o na pandemia em São Paulo; abaixo, nova ala e alta
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Fotos Mathilde Missioneir­o/Folhapress A emergência do hospital Vila Nova Cachoeirin­ha, que recebe doentes de Covid na zona norte de SP
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