Folha de S.Paulo

Expulsões por falas racistas levam guerra cultural aos games

Influencia­dores com discurso racista que usavam a marca Xbox em seus canais são desautoriz­ados pela empresa em caso que traz guerras culturais ao mundo dos games

- Eduardo Moura

são paulo Um sujeito publica uma piada racista na internet. Em menos de uma semana, é expulso de um punhado de plataforma­s das quais tirava a sua renda, jogando videogames e falando sobre eles.

Emresumo, esse é o caso que sacudiu a comunidade gamer no Brasil na última semana —e que foi o front mais recente das guerras culturais no país.

Imagine uma época em que se considera aceitável proferir desaforos preconceit­uosos em frente a grandes públicos. Nós provavelme­nte ainda estamos vivendo nela.

Um streamer é uma espécie de performer online que joga videogame enquanto faz gracinhas para sua audiência. Ao mesmo tempo, costuma atacar de youtuber. Alguns se valem do chamado discurso “politicame­nte incorreto” para construir suas personas virtuais.

No fim de maio, quando manifestaç­ões ligadas ao Black Lives Matter só cresciam, um membro do canal Xbox Mil Grau postou no Twitter uma montagem em que se lia “o que pessoas negras estão fazendo hoje/ o que pessoas brancas estão fazendo hoje”. De um lado, uma fotografia de uma pessoa negra perto de um carro em chamas. Do outro, astronauta­s brancos num simulador da SpaceX.

Hashtags em repúdio ao post tremularam no Twitter. Mas, num primeiro momento, nada aconteceu de fato.

O editor de vídeo Ricardo

Regis foi um dos principais catalisado­res do processo de degola do canal. Ele compilou falas ditas durante transmissõ­es do Mil Grau e postou nas redes sociais —e viralizou. No vídeo, piadas com Hitler, lésbicas e negros.

“Para quem já conhecia [o canal], nada do que foi dito ali foi algo novo”, diz Regis. “Criou-se a ‘etiqueta’ de deixá-los falar e fazer o que quisessem.”

A coisa escalou, e aí vieram as expulsões, notas de repúdio e um “fatality” —a Xbox proibiu que o nome do canal incluísse a marca. “O conteúdo da conta Mil Grau não reflete nossos valores fundamenta­is de respeito, diversidad­e e inclusão”, escreveu em nota.

Em nota, os streamers tentaram se explicar, dizendo que não houve racismo. Dizem que seu conteúdo é recomendad­o para maiores de 18 anos. “Fazemos brincadeir­as e piadas conhecidas como ‘humor negro’.”

O universo dos games talvez abrigue os casos mais palpáveis do chamado fetichismo da mercadoria. Alguns gamers se orgulham em se definir como “nintendist­as”, “sonystas” ou “caixistas”, numa espécie de amor patriótico a uma fabricante de videogame.

O Xbox Mil Grau acabava atuando como um evangeliza­dor espontâneo da Xbox —antes do episódio, a relação entre os dois era outra.

A conta oficial da Xbox Brasil já chegou a usar um conhecido bordão da Mil Grau, “é com isso?”, em suas redes sociais para fazer graça.

Segundo Regis, a Microsoft chegou a levar o time do Xbox Mil Grau, com tudo pago, à E3, maior feira de videogames do mundo, nos Estados Unidos. Procurada, a Microsoft não confirma se houve de fato o patrocínio e não fala sobre a relação da empresa com o canal ao longo dos últimos anos.

Mas o que teria causado essa mudança de postura da Xbox? Faz sentido dizer que o universo dos games passa por um momento de virada de chave em que discursos preconceit­uosos anteriorme­nte tolerados não são mais aceitos? Vamos com calma.

O post do membro da Mil Grau aconteceu justamente numa semana em que marcas globais, como Twitter e YouTube, se manifestav­am oficialmen­te a favor do movimento Black Lives Matter.

Seguindo os passos do braço musical da Sony, a PlayStatio­n adiou um evento sobre o PS5, ainda a ser lançado, e postou um texto em apoio ao movimento, seguido pela hashtag #BlackLives­Matter, no dia 1º de junho. A concorrent­e Xbox foi lá e retuitou. A Nintendo demorou um pouco mais e publicou no dia 3 um comunicado solidário à comunidade negra.

A Rockstar Games bloqueou temporaria­mente seus jogos online, incluindo “GTA” e “Red Dead”, também em apoio ao Black Lives Matter.

Dizer que foi um caso de lugar e hora errados pode ser uma análise mais precisa do que aconteceu com o Mil Grau.

Mas nada disso invalida necesariam­ente a ideia de que os games passam por um período de transição —ainda que esse processo seja lento.

“Eu acho que se estivéssem­os na fase de fazer vista grossa [a discursos preconceit­uosos por parte das plataforma­s] seria um avanço. Do meu ponto de vista, estamos na fase do endosso”, diz Regis, que também é fundador de um canal de games, o Nautilus. “Difícil enxergar mudança positiva em meio ao contexto sociopolít­ico que a gente vive, mas eu acredito que, por menor que tenha sido, essa foi uma pequena vitória. Gera precedente.”

Não é de hoje que os games são palco de disputas que ultrapassa­m as telas de computador. Um caso que entrou para a história recente das guerras culturais foi o Gamergate. O estopim fui um post num blog de 2014 sobre um término de namoro. No texto, um homem chora as pitangas depois de terminar com Zoë Quinn, uma desenvolve­dora de games de Boston.

Uma parte do textão dizia que a mulher teria se relacionad­o com um jornalista de um site especializ­ado, o Kotaku. Isso supostamen­te teria revelado como eram sórdidas as relações dos desenvolve­dores de games com a mídia.

Segundo o New York Times, o jornalista nunca escreveu sobre nenhum game de Quinn. Mas o texto foi parar no 4chan, e lá a misoginia tomou corpo.

Quinn teve o endereço físico descoberto, informaçõe­s pessoais divulgadas, fotos íntimas vazadas e sofreu intimidaçã­o e assédio virtual em massa. Pelo menos outras duas mulheres foram alvo de ataques parecidos no mesmo período.

O Times descreveu o episódio como “máfia que criou um manual para uma guerra cultural”. Steve Bannon disse que usou o Gamergate como inspiração e catalisaçã­o para a campanha presidenci­al de Donald Trump. “Você pode ativar esse exército. Eles entram no Gamergate ou o que quer que seja e depois se voltam para a política e Trump”, disse Bannon ao jornalista Joshua Green, há três anos.

O relatório do FBI, a polícia federal americana, dizia que “não foram identifica­dos perpetrado­res ou ações” e que a procurador­ia em Boston, para onde o caso foi enviado, “recusou persecução da matéria”.

Os acusados não tinham um rosto definido e, nesse caso, não houve qualquer punição.

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Jairo Malta Ilustração a partir de cenas do jogo ‘GTA’, conhecido por seus personagen­s controvers­os

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