Folha de S.Paulo

A hora errada

Flagelo da falta de ‘timing’ na pandemia é a grande obra de Bolsonaro

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira” | dom. Antonio Prata | seg. Tabata Amaral, Thiago Amparo | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | qui. Sérgio Rodrigues | sex. Tati Berna

Outro dia falei dos empréstimo­s excessivos, exibicioni­stas e jecas que parte da sociedade brasileira gosta de tomar da língua inglesa. Timing (pronuncia-se “táimin”), derivado de “time”, tempo, é um exemplo de empréstimo útil.

Assim como o inglês é incapaz de diferencia­r de forma expressa o ser e o estar, o português não consegue dizer o que está dito em “timing” sem recorrer a um bom punhado de palavras.

Normal. Organismos vivos, as línguas têm seus traços caracterís­ticos, personalid­ades, elementos intraduzív­eis. “Serendipit­y” pra lá, cafuné pra cá, quem tenta extrapolar essas diferenças para traçar hierarquia­s entre elas sempre quebra a cara.

Isso não nos impede de reconhecer a funcionali­dade de timing na expressão de certas ideias. O Brasil tem hoje, além do problema da pandemia e do problema de Bolsonaro, um problema de timing.

Um problemaço, na verdade. Acabar com o isolamento social quando disparam os números de infectados e de mortos é receita de massacre.

Esta circunstân­cia se relaciona às duas primeiras, como se vê, mas antes de tudo convém investigar melhor o timing. Seu sentido mais antigo, do século 16, é o de registro de tempo, cronometra­gem —o que não vem ao caso.

A acepção que interessa aqui, predominan­te no uso contemporâ­neo, é definida assim pelo dicionário Webster’s College: “Escolha do melhor momento para fazer ou dizer alguma coisa a fim de obter o efeito desejado”.

Fala-se muito em timing no vocabulári­o das artes performáti­cas, sobretudo do teatro: “Aquela atriz tem timing de comédia”. Nesse sentido específico, ritmo é uma tradução passável. Em outros contextos que o timing ilumina, não.

Timing não é igual a tempo, embora eventualme­nte possa ser traduzido assim. É noção de tempo, precisão no tempo, encaixe temporal a um processo, coordenaçã­o.

O Houaiss, que traz o verbete em inglês mesmo (palmas para ele, o uso da palavra se impõe), se multiplica em vocábulos para expressar isso.

“Sensibilid­ade para o momento propício de realizar ou de perceber a ocorrência de algo, ou senso de oportunida­de quanto à duração de um processo, uma ação etc.”

Ênfase em “momento propício”. É por isso que a palavra nos ajuda a entender o tamanho do buraco em que nos metemos, a começar pelo erro de timing que dá origem à série: o de termos no leme um homem como Bolsonaro durante a maior emergência humanitári­a e econômica da história do país.

Fatal, esse erro costuma ser posto de lado sob o argumento de que “ninguém podia prever o vírus”. Há verdade na afirmação, claro, mas falta responder quais seriam as condições ideais em que entregar o país a gente desse naipe fosse crime sem castigo.

Os outros erros de timing que nos flagelam são consequênc­ias daquele. A definição que arrisquei acima —“noção de tempo, precisão no tempo, encaixe temporal a um processo, coordenaçã­o”— é um compêndio de tudo o que faltou ao Brasil nesses meses de exposição ao vírus.

Entre o voluntaris­mo espasmódic­o dos governador­es e o caos metódico do governo federal, o auxílio que chegou tarde e o que nunca chegou, o fechamento que não fecha e a reabertura que não devia reabrir, estamos oferecendo ao mundo um show de falta de timing poucas vezes visto.

A ausência de liderança estraçalho­u o timing de um povo que gosta de se ver como bamba do ritmo. E dizem que o timing do impeachmen­t ainda não chegou. Mais do que nunca, o timing é de ficar em casa.

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