Folha de S.Paulo

Alívio cômico no pesadelo

Com menos recursos, programas de humor brilham na pandemia

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Topa Tudo por Dinheiro’. É mestre em sociologia pela USP

“Acabei de recontar todos os números no tocante a isso daí. E eu já sabia: os números estão exagerados. Vamos, então, corrigir imediatame­nte isso daí. A partir de agora, o dia terá 17 horas, e não 24, que é um número meio estranho, para vocês pararem de me encher o ano inteiro.”

Eram 19h de segunda-feira (8) quando Marcelo Adnet surgiu na tela do Globoplay com este texto, fazendo a sua já conhecida imitação de Jair Bolsonaro. A piada se referia à decisão do Ministério da Saúde, confirmada naquele dia, de alterar a apresentaç­ão dos números sobre a pandemia.

Um pouco antes, o humorista havia feito uma imitação de Olavo de Carvalho, cujo vídeo mais recente incluiu ameaças ao presidente: “Bolsonaro, eu posso derrubar você, porra. Eu tenho provas. Aqui! Não, isso aqui é o mapa astral”.

Desde 13 de abril, o serviço de streaming da Globo exibe de segunda a sexta novos episódios de “Sinta-se em Casa”, com cinco minutos de duração, no qual Adnet faz imitações de personagen­s do noticiário em cenários improvisad­os de sua casa.

O risco de contaminaç­ão pelo coronavíru­s afetou gravações de novelas, séries, reality shows e programas de auditório, mas poupou o universo do humor, que se vira mais facilmente com menos recursos. A crônica diária de Adnet tem sido um dos alívios nestes tempos tão absurdos e sombrios.

Outro refresco vem sendo oferecido pelo Porta dos Fundos. O canal de humor no YouTube criado por um grupo de amigos em 2012 tem levado a sério a missão de rir da realidade em vídeos curtos e afiados.

Hoje uma empresa com 80 funcionári­os, pertencent­e à Viacom americana, o Porta está funcionand­o em regime de trabalho domiciliar. Todos os vídeos semanais são criados e gravados por vídeo conferênci­a —e a produção parece estar mais intensa do que na pré-pandemia.

Esta semana, um dos vídeos, intitulado “Nota de Repúdio”, discutiu a falta de representa­tividade de negros na televisão. Duas mulheres negras (Nathália Cruz e Noemia Oliveira) tentavam protestar sobre o assunto, mas eram a todo momento interrompi­das por dois homens brancos (João Vicente de Castro e Fabio Porchat). A solução que encontram foi deixar a imagem dos homens no ar, sem som, enquanto elas diziam o texto ao fundo.

Já mencionei aqui outra solução caseira excelente, encontrada pelo “Greg News”, na HBO. Ele está sendo gravado na casa da mãe do apresentad­or, Gregorio Duvivier, colunista da Folha, com a ajuda de sua irmã, que faz a câmera e a iluminação.

Com Duviver comentando assuntos da atualidade entre piadas e ironias, a atração se enquadra no formato que os americanos chamam de “comedy news”. O tema desta semana foi o trabalho de empregadas domésticas. Uma paulada.

Citando um dado de uma pesquisa divulgada em abril pela BBC, o apresentad­or disse: “Quarenta e cinco por cento das diaristas que trabalham para as classes A e B foram mandadas embora sem receber. O que prova que existe um pequeno véio da Havan dentro de cada família da elite brasileira. Ou pelo menos em 45% delas”.

Também devemos à quarentena a estreia, neste último domingo, de Como Lidar?, um quadro no Fantástico, de produção caseira, protagoniz­ado pelo humorista Paulo Vieira. Sem a mesma acidez dos demais citados aqui, é uma crônica bemhumorad­a e inteligent­e sobre as agruras do confinamen­to. “Tenho medo de abrir a minha geladeira e ter uma live lá dentro com a participaç­ão do Neymar”, observou Vieira.

O humor é uma arma poderosa e, se bem usada, como nestes casos, pode ajudar, como se dizia em outros tempos pesados, a aliviar a barra.

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