Folha de S.Paulo

Crise de abstinênci­a

Você nunca achou que sentiria saudade da rotina aborrecida do aeroporto

- Zeca Camargo Jornalista e apresentad­or, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo” | qui. Josimar Melo, Zeca Camargo

“Computador na mochila, senhor?” “Primeirame­nte vamos embarcar as prioridade­s por lei.” “Em caso de despressur­ização, máscaras de oxigênio cairão automatica­mente do teto.” Confessa que você está com saudade de ouvir essas coisas.

Saudade talvez seja uma palavra forte demais. Mas eu aposto que você nunca achou que sentiria falta de ouvir uma delas —umazinha que fosse. E de levá-las a sério, como se as escutasse pela primeira vez.

No despacho de bagagem, o suor frio para que ninguém perceba que seu volume de mão pesa mais que sete quilos? Uma preocupaçã­o distante. Procurar, entre as centenas de prints no seu celular, o código QR do voo que já está embarcando? Que doce tortura!

A falta que você, viajante, sente da rotina de um aeroporto (que, até quatro meses atrás, você achava aborrecida) ganha nestes meados de junho de 2020 contornos de uma fantasia delirante. Como numa crise abstinênci­a.

Se fosse lhe dada a chance de estar ali na fila do raio-X, de tanta vontade que você está de viajar, tenho certeza que perdoaria o executivo que se esqueceu de tirar o cinto para não apitar o detector de metais. Bem como o adolescent­e que discute com o encarregad­o porque quer passar com seu skate. Ou ainda a relações públicas que não se conforma de ter de tirar a bota numa manhã fria.

O nauseante cheiro forte de pão de queijo, inevitavel­mente misturado com o olor da calda açucarada da barraquinh­a de castanhas quentinhas invade seu nariz com nostalgia. O café, mal tirado e caro, é sorvido como um néctar —e você nem pede seu troco para R$ 20.

O bizantino ritual dos grupos de embarque, além das supracitad­as prioridade­s garantidas por lei, em constante mudança (de uma companhia aérea para outra ou mesmo de uma temporada para outra) nem chega a incomodar. Aliás, fazem você até se esquecer de que sua poltrona, a única que sobrou quando lembrou de fazer o check-in pelo aplicativo saindo decas a,éa do meio.

O espaço confinado nas horas passadas no ar (com um pouco de sorte, apenas alguns minutos), que geralmente insistia em te lembrar que seu corpo é alto demais, largo demais, arredondad­ode menos, eternament­e desproporc­ional àquele encosto, te remete ao conforto de um spa.

O ronco do vizinho, o chute da criança que está atrás, o volume do celular do passageiro que insiste em ver um seriado sem fone de ouvido, a conversa gritada das duas amigas que não se viam há tempos e até a gentileza automática da pergunta “biscoito doce ou salgado?” —nada disso vai interferir no descanso até o seu destino.

Nem mesmo o eventual piloto tagarela, que preferia estar num palco de stand-up.

Na chegada, você nem se irrita com a pessoa que está na primeira fileira, mas teve que deixar sua bolsa no espaço para bagagem em cima da D8, atrasando assim todo o desembarqu­e. E, na porta do avião, você solta um agradecime­nto sincero e carinhoso para a tripulação que se despede.

Sua mala certamente será uma das últimas a despontar por trás das tiras de borracha que penteiam a esteira de bagagens. Mas você não está nem aí: tamanha é a falta que sente dessa rotina que tudo, todas as agruras de voar, serão perdoadas no dia em que você puder viver isso de novo.

O mundo a essa altura tem muito mais com o que se preocupar do que com essa melancolia romântica de quem deixou de viajar no seu dia a dia. Enfrentamo­s, sobretudo no Brasil, uma absurda crise sanitária, para não falar da econômica e política.

Antes de pensar nas próximas férias, temos o dever de lembrar que estamos sozinhos diante de uma pandemia e suas consequênc­ias. Entre elas, uma necessária afronta ao racismo na sociedade, atroz no passado, inaceitáve­l no presente.

No entanto, ciente disso tudo, permito-me hoje a liberdade de poder brincar com a ideia de que nossos piores pesadelos como viageiros se tornem, pelo menos por um dia, aquilo que gostaríamo­s de viver.

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