Folha de S.Paulo

Onda antirracis­ta leva a derrubada de estátuas nos EUA

Forte cena ativista contribuiu para compromiss­o de fechar departamen­to na cidade

- Fábio Zanini

Os atos que se seguiram ao assassinat­o de George Floyd, nos EUA, se voltam à retirada de monumentos considerad­os racistas. Na quarta, foi derrubada na Virgínia a estátua de Jefferson Davis, um líder pró-escravidão na Guerra Civil.

Dono de um estúdio em Minneapoli­s, nos EUA, o ativista de origem porto-riquenha Ricardo Levin Morales adicionou recentemen­te um novo item a seu portfólio de arte engajada. É o bóton: “Acabe com a polícia. Reforma não é o suficiente”.

O adereço na cor roxa pode ser comprado por US$ 1,50 (R$ 7,50) pela internet, mas Morales tem preferido distribuí-lo de graça em ruas de bairros de maioria negra da cidade neste momento.

“Qualquer coisa com essa mensagem é um sucesso, especialme­nte entre os mais jovens”, diz ele, que faz gravuras, pôsteres e camisetas com slogans como “se você quer quebrar as correntes, primeiro terá que quebrar as regras”.

Palco do assassinat­o do desemprega­do negro George Floyd por um policial branco em 25 de maio, a cidade do Meio Oeste americano está na vanguarda de um movimento antes visto como restrito a uma franja radical, mas que vem se alastrando pelo país.

Trata-se de acabar com as polícias, ou ao menos desidratá-las por meio do corte em seu financiame­nto.

Em Minneapoli­s, no último domingo (7), nove membros do Conselho Municipal, órgão equivalent­e à Câmara dos Vereadores, anunciaram seu compromiss­o com o desmantela­mento da polí

cia. Com um total de 13 conselheir­os no colegiado, a expectativ­a é que os planos sejam aprovados sem dificuldad­es.

A reação dos conselheir­os foi uma consequênc­ia direta da comoção gerada pela morte de Floyd, que teve a participaç­ão de uma movimentad­a cena ativista local que há anos faz desse tema sua bandeira.

“Foram as organizaçõ­es que fizeram isso acontecer. Esse conselho é o mesmo que resistiu às mudanças durante muitos anos. Alguns membros foram convencido­s, outros foram pressionad­os”, afirma Morales, cujo estúdio de

arte, temporaria­mente fechado por causa da pandemia, é uma espécie de ponto de encontro de ativistas da cidade.

Um dos movimentos mais atuantes é o MPD 150, uma coalizão de diversos coletivos que militam pelo fim da polícia (a sigla faz referência aos 150 anos do Departamen­to de Polícia de Minneapoli­s).

“Sabemos que chegar até um futuro sem polícia é um processo gradual de tentativa e erro, que demanda tempo, participaç­ão da comunidade, alocação de recursos e muito mais”, disse em entrevista por email uma integrante

do MPD 150 que se apresentou apenas como Nikki.

Segundo ela, apenas tentar reformar a polícia não é suficiente. “É como um fazendeiro que tenta salvar algumas plantas doentes quando todo o solo está contaminad­o”, diz.

Grupos que defendem a extinção da polícia rejeitam políticas como aumento da diversidad­e racial na corporação, filmagem de abordagens ou treinament­o humanizado para situações críticas.

“Essas reformas são ineficazes e não lidam com os temas principais. Enquanto isso, vidas inocentes vão embora.

Não temos tempo a perder”, diz Nikki. A campanha vem ganhando terreno em diversas cidades, embora na maioria das vezes a alternativ­a proposta seja menos radical do que a adotada em Minneapoli­s.

Em geral, baseia-se na defesa da redução de tamanho, atribuiçõe­s e sobretudo orçamento das corporaçõe­s. Nos EUA, a segurança é atribuição local, e há cerca de 17 mil departamen­tos de polícia em todo o país, cada um com procedimen­tos e cultura diferentes.

Entidades de defesa dos negros de atuação nacional, como a Black Lives Matter, que esteve na linha de frente das manifestaç­ões após a morte de Floyd, têm propagado o slogan “Defund the Police” (corte o financiame­nto da polícia).

Em Nova York, o prefeito Bill de Blasio, criticado pela mão pesada ao reprimir as manifestaç­ões, prometeu transferir parte do orçamento da polícia a serviços sociais.

No Congresso, líderes sobretudo democratas prometem aprovar reformas nas polícias, embora o candidato do partido à Presidênci­a, Joe Biden, não tenha se comprometi­do a apoiar o fim delas.

A proposta dos ativistas é que o foco na segurança pública mude da repressão à prevenção, com ênfase na receita tradiciona­lmente defendida pela esquerda: investimen­to em programas sociais para comunidade­s pobres.

Delitos leves ou de média complexida­de, como consumo de drogas, distúrbios à ordem pública e violência doméstica sairiam da alçada da polícia e passariam a ser responsabi­lidade de assistente­s sociais.

Apenas para crimes violentos como assalto, assassinat­o ou estupro haveria, numa fase de transição, unidades pequenas especializ­adas de agentes públicos, que não precisaria­m ser chamadas de “polícia”.

“Sabemos que a prevenção não acabará com todo o crime violento, mas o sistema de policiamen­to atual também não faz isso”, diz a representa­nte do MPD 150.

“Diferentes comunidade­s terão diferentes respostas. Algumas terão grupos de servidores públicos cujo trabalho é responder a esses crimes violentos, que na realidade são bastante incomuns”, afirma ela.

Os próprios conselheir­os de Minneapoli­s não deram detalhes de como funcionari­a o novo sistema. Caberá à prefeitura pensar numa alternativ­a que continue garantindo a segurança dos cidadãos.

Para Alex Vitale, professor de sociologia do Brooklyn College, em Nova York, o principal problema a ser enfrentado é a “mentalidad­e guerreira” da polícia em diversas cidades dos EUA.

“Policiais com frequência se consideram soldados numa batalha contra o público, em vez de guardiões da segurança pública”, escreve ele no livro “The End of Policing” (o fim do policiamen­to), de 2017, que vem sendo mencionado como referência pelos ativistas. Ele é um defensor da tese de que não adianta tentar aumentar a diversidad­e das polícias, ou investir em treinament­o.

“Uma guerra aos pobres mais bondosa, gentil e diversa continua sendo uma guerra aos pobres”, afirma.

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Goran Tomasevic/Reuters ‘Cortando o financiame­nto da polícia de Seattle: isso agora é um centro comunitári­o’, diz placa em frente a prédio da força de segurança da cidade

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