Folha de S.Paulo

De Jorge para Zélia

Há 75 anos, Jorge Amado declarou seu amor por Zélia Gattai em coluna na Folha

- Paula Sperb

O leitor da Folha da Manhã que comprasse o jornal em 1945 podia ler, três vezes por semana, a coluna “Conversa Matutina”, do escritor baiano Jorge Amado.

Autor já consagrado, ele havia lançados 12 livros até então, incluindo alguns dos seus principais títulos, como “Jubiabá” (1935), “Capitães da Areia” (1937) e “Terras do SemFim” (1943).

Entre abril e julho daquele ano, pelo menos 46 colunas assinadas por Amado foram publicadas na Folha da Manhã, segundo pesquisa no acervo da Folha (acervo.folha. com.br). O nome dele era seguido da informação “Especial para a Folha da Manhã”.

Em 1945, as Folhas —como eram chamadas as duas publicaçõe­s da mesma empresa, uma da Manhã e outra da Noite— tinham tiragem de 80 mil exemplares. A circulação, cinco vezes maior do que a registrada no final da década anterior, foi impulsiona­da especialme­nte pela necessidad­e de informaçõe­s sobre a Segunda Guerra Mundial.

O conflito era um dos principais temas abordado por Amado nos textos no jornal. “As viúvas, os órfãos, os mutilados, os tuberculos­os, todas as vítimas do crime nazista se levantarão para acusar. E nada poderá salvar aqueles que ajudaram Hitler e Mussolini”, escreveu em 15 de maio de 1945, sobre a punição dos crimes de guerra. O título desse texto era “Ciranda dos Traidores”.

O escritor era antifascis­ta e usava o espaço para combater o nazismo de Hitler. Comunista, exaltava os esforços da então União Soviética para derrotar os nazistas. Anti-imperialis­ta, admirava até mesmo os EUA por terem se somado às forças Aliadas contra o Eixo.

A Folha revelou que a CIA, a agência de inteligênc­ia dos EUA, monitorava Amado. “Garoto de recados dos comunistas”, dizia um documento.

“Como os soviéticos acabaram conseguind­o vencer Hitler, durante um bom tempo no pós-guerra, os comunistas eram vistos como pessoas que salvaram o mundo do fascismo”, diz Josélia Aguiar, biógrafa do escritor e autora de “Jorge Amado: uma biografia” (Todavia, 2018).

Hoje tal fato pode soar contraditó­rio, ressalta ela, já que as execuções e campos de concentraç­ão de Stálin são amplamente conhecidos. O próprio Amado, na época stalinista, rompeu com o Partido Comunista em 1956 quando veio à tona o chamado Relatório Kruschev, que revelou as atrocidade­s do ditador.

Entre tantos textos combativos, chamou atenção o tom apaixonado de um deles.

Jorge Amado conheceu Zélia Gattai naquele ano em São Paulo. Ela passou a trabalhar

como voluntária em um comitê na praça da República. O movimento, além de apoiar o revolucion­ário Luís Carlos Prestes, pedia eleições livres contra o Estado Novo.

O escritor perguntou a Gattai se ela lia suas colunas na Folha. Ela disse que sim. “Pois não deixe de ler a de amanhã”, ele recomendou. A cena é descrita no livro “Um Chapéu para Viagem” (1982), de Gattai. Consta também na biografia recente de Aguiar.

No acervo da Folha é possível encontrar a declaração de amor. Na coluna, parcialmen­te ilegível, o que se lê é uma oferta do “marinheiro pra Yemanja”. O eu-lírico fala em dar “um pente pra teus cabelos penteares” e “um anel para teus dedos”. “Te darei meu saveiro para nele passeares”, “cantarei para teu sono sossegar” e “irei buscar a lua”, escreve. “Te darei meu corpo para o afogares”, finaliza.

O conteúdo da coluna confere com aquele recordado por Gattai. “A crônica — crônica ou declaração de amor? —, que meus olhos devoraram logo cedo, na manhã seguinte, era romântica e apaixonada. Não citava nome, nem era preciso; num certo trecho dizia assim: ‘Eu te darei um pente pra te pentear, colar para teus ombros enfeitar, rede para te embalar, o céu e o mar eu vou te dar...”, ela escreveu quase 40 anos depois.

A “manhã seguinte” tinha significad­o especial não só por causa da confissão amorosa no jornal. Amado avisou Gattai sobre a surpresa no dia do seu aniversári­o de 29 anos, em 2 de julho de 1945. A coluna foi publicada no dia 3.

“Ela já tinha admiração pela

figura do escritor e foi corajosa para romper seu primeiro casamento, já que o divórcio não existia na época. Ele já tinha fama de mulherengo, mas deu muito certo, se completava­m mesmo. O fato de terem posicionam­ento político igual foi fundamenta­l. Ela não era só a bonita, agradável, cativante. Ela tinha também a militância”, diz a biógrafa.

Na Folha da Manhã, Amado escreveu também sobre artes visuais, música e literatura, dedicando uma crônica a um dos seus autores preferidos, o inglês Charles Dickens. Mas mesmo quando escrevia sobre esses temas, não escapava da guerra e da ditadura do Estado Novo.

“Este é um ano pouco literário, ano que todas as atenções se voltam para os problemas políticos, quando os escritores, acertadame­nte, gastam os espaços dos jornais no comentário à situação nacional e internacio­nal. As obras literárias não podem desejar grande repercussã­o neste ano de 1945, por mais importante­s que elas sejam”, escreveu em 26 de maio. O tema principal do texto: “Oswald de Andrade, o grande romancista”.

Em São Paulo, viveu em um apartament­o na avenida São João. “Procurei durante muito tempo descobrir qual era o número. Encontrei cartas para ele desta época, mas não vi envelopes, por isso fiquei sem saber o número exato do endereço”, conta a biógrafa. Segundo ela, o autor morou na cidade de janeiro ou fevereiro até o final do ano, quando saiu de férias após a eleição.

Filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), o escritor foi eleito deputado federal

por São Paulo. No ano seguinte, participou da Constituin­te, sendo autor da lei da liberdade religiosa.

Nas suas crônicas, tanto na Folha da Manhã como em O Imparcial, de Salvador (a partir de 1942 na coluna “Hora da Guerra”), Amado combatia o preconceit­o contra judeus, principais vítimas do nazismo. A coluna no jornal soteropoli­tano durou até janeiro de 1945, quando se mudou para São Paulo.

“Ele usava palavras e expressões que voltaram à tona recentemen­te, como obscuranti­smo, métodos feudais, nazifascis­tas. São discussões bastante atuais para a pauta de hoje, incluindo o antissemit­ismo”, explica o pesquisado­r Márcio Muraca, autor de “Jorge Amado e o Judeu”.

Em 25 de abril de 1945, citando o noticiário, Amado escreveu o seguinte na Folha da Manhã: “Há dois anos, dos 35 mil judeus que ainda resistiam no gueto de Varsóvia, 23 mil foram assassinad­os pelos nazis e os demais doze mil postos em campos de concentraç­ão”.

“Na obra literária, o judeu aparece como um ser sensível, intelectua­l, culto e comunista. Um desses personagen­s é Samuel, do romance ‘Farda, Fardão, Camisola de Dormir’. Ele é jornalista, uma figura ligada à escrita”, diz Muraca.

Na noite de 3 de julho de 1945, dia em que se declarou para Gattai no jornal, Amado perguntou se ela tinha lido “o que escrevera pensando nela”. “Perturbada”, ela disse que leria mais tarde.

Amado, então, pediu ajuda para a última palavra do discurso que faria em um comício. “Amor”, respondeu Gattai.

Te darei meu saveiro para nele passeares (...) Cantarei para teu sono sossegar (...) Irei buscar a lua Jorge Amado em coluna do dia 3.jul.1945

 ?? Reprodução ?? Zélia Gattai e Jorge Amado em Moscou em 1951, seis anos depois da coluna publicada na “Folha da Manhã”
Reprodução Zélia Gattai e Jorge Amado em Moscou em 1951, seis anos depois da coluna publicada na “Folha da Manhã”
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