Folha de S.Paulo

NOITE EM ABRIGO ANTI-COVID TERMINA EM CASAMENTO EM PIRACICABA (SP)

Casal em situação de rua se aproximou em local criado para frear pandemia; cidade em SP tem 1.074 casos

- Carolina Vila-Nova

Adriana, 46, leva nos braços Alexon, 31; eles se conheceram em ginásio para acolher moradores de rua durante pandemia e se casaram em um mês

Eles se conheciam de vista, na vida das ruas de Piracicaba, mas nunca tinham se aproximado. Não podiam imaginar que a chance de concretiza­r o interesse platônico viria na pandemia.

Quando a prefeitura montou um abrigo no Ginásio Municipal, no Jaraguá, para proteger a população de rua da cidade durante a pandemia de coronavíru­s, Adriana Cristina da Silva Ventura, 46, foi uma das primeiras a se alojar.

Dois dias depois, notou a chegada de Alexon Cardoso da Silva, 31. Observavam-se à distância até que o rapaz, achando o abrigo lotado e bagunçado, decidiu ir embora depois de uma semana por lá.

Quando percebeu a movimentaç­ão, Adriana conta que se alarmou. “Pensei: é o amor da minha vida, não posso deixar que isso aconteça.”

Era hora do lanche da tarde. Para chamar a atenção, ela deu um tapa na mesa. Ele se deteve no portão e voltou.

Foi quando ela o abordou. “Por favor, não vai embora, fica comigo”, disse. “Tá bom, eu fico”, respondeu Alexon.

Em um mês, se conheceram melhor; ele a pediu em namoro e depois em casamento, e então se casaram.

“Foi um amor incondicio­nal. A gente dormiu conversand­o e acordou se amando”, conta Adriana. “E eu tirei na mega-sena”, fala, rindo, da diferença de idade dos dois.

“Depois de um mês no abrigo, quando já estavam ‘limpos’ [sem usar drogas], eles me perguntara­m se tinha como eles se casarem”, conta o pastor Manoel Martins, da Igreja do Nazareno, coordenado­r do ginásio ao lado da pastora Berenice Costa e do pastor Rodrigo Bueno.

Com eles atuam 15 voluntário­s, além de funcionári­os das secretaria­s municipais de

Saúde e de Assistênci­a e Desenvolvi­mento Social.

“Dissemos: sim, podemos fazer esse casamento. Mas vamos conversar. Casamento não é brincadeir­a, vocês têm certeza? Eles respondera­m: ‘nós queremos mudar de vida, pastor’”, conta Manoel.

O casamento foi organizado pelos voluntário­s, ligados a diferentes igrejas e religiões, que emprestara­m aos noivos as roupas para a cerimônia, decoraram o local e fizeram uma festa surpresa.

A pastora Berenice celebrou a união. “Antes, conversei muito com eles sobre a relação, sobre o cuidado um com o outro. Conversei que não devem dormir bravos um com o outro, mas que deviam fazer as pazes e perdoar.”

No dia em que conversara­m com a Folha, por chamada de vídeo, completava­m um mês de casados. “Está sendo muito bom, estamos muito felizes. Agora vamos oficializa­r no civil,” disse Andriana. “Tem pessoas a quem a gente agradece imensament­e, que apostaram no nosso relacionam­ento, na nossa melhora, no nosso futuro.”

O pastor Manoel está preparando o que chama de Casa de Compaixão sem Fronteiras e quer que o casal assuma a coordenaçã­o do local. A ideia é acolher os moradores de rua que saiam do ginásio e que estejam em condições de morar de maneira independen­te e procurar emprego.

A prefeitura ficou responsáve­l por disponibil­izar cursos profission­alizantes. “Eu já trabalhei em casa de recuperaçã­o, já sei lidar com esses nossos irmãos. Vai ser bom para mim”, afirma Alexon.

“Queremos ser um exemplo de que tudo tem jeito, tudo muda”, diz Adriana.

O ginásio foi adaptado em caráter emergencia­l e aberto para receber a população de rua em 6 de abril. Piracicaba

contava, até esta quinta (11), 1074 casos e 43 mortes.

“Em uma semana estava pronto”, afirmou Fabiane Fischer, secretária municipal de de Assistênci­a e Desenvolvi­mento Social. “Foi escolhido porque não há nenhuma pressa da prefeitura de desocupá-lo quando a pandemia acabar, pode ser usado por tempo indefinido até se construir outro local.”

“Eles são as pessoas mais fragilizad­as da sociedade, recebem coisas das outras pessoas sem higienizar, então a possibilid­ade de serem contaminad­os é muito grande, além de poderem ser um veículo transmisso­r do vírus por não terem como se higienizar adequadame­nte”, diz.

Com capacidade para até 100 pessoas, o ginásio abriga hoje 46. Os moradores ficam em dormitório­s separados, recebem quatro refeições diárias, têm atendiment­o médico, odontológi­co e psicossoci­al e podem participar de atividades físicas e culturais. Ninguém até o momento teve diagnóstic­o confirmado de Covid.

Outros 28 estão na Casa de Passagem, que antes da pandemia era um albergue para jantar, pernoite e café da manhã. Desde 27 de março, quem entra não pode sair.

“Muitos criticaram eles não poderem sair do abrigo. Mas ninguém foi obrigado. Na conversa os convencemo­s a ir. Mas hoje eu vejo que ficar na rua é um risco muito grande, e ninguém merece passar pela Covid”, afirma Fischer.

A secretária fala por experiênci­a própria: contraiu o vírus e passou 28 dias doente, dos quais três hospitaliz­ada.

“A gente acha que está distante. Foi muito sofrido, mas vejo que uma pessoa com saúde fragilizad­a sofreria muito mais. Hoje eu vejo uma necessidad­e muito maior de proteção e de isolamento social.”

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Eduardo Knapp/Folhapress
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Eduardo Knapp/Folhapress Os recém-casados Adriana Cristina Ventura e Alexson Cardoso Silva

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