Folha de S.Paulo

Do Vietnã a Black Lives

Maior cronista das tensões raciais no cinema, Spike Lee reabilita papel dos soldados negros na Guerra do Vietnã com o filme ‘Destacamen­to Blood’, enquanto cidades ardem sob os protestos do Black Lives Matter

- Guilherme Genestreti

Na grade da Netflix, o novo filme de Spike Lee, “Destacamen­to Blood”, reabilita papel dos soldados negros na Guerra do Vietnã e faz menções ao Black Lives Matter. Cineasta parece recuperar boa forma.

No início dos anos 1970, assolado por uma depressão que o levou a uma tentativa de suicídio, Marvin Gaye se isolou no estúdio da Motown, em Detroit, e gravou o soturno “What’s Going On”. No disco, o cantor de soul trocava os duetos românticos que embalaram casais brancos na década anterior por composiçõe­s melancólic­as e de cunho social, ecos dos embates por igualdade racial daqueles tempos.

Inspirado nas cartas que trocou com o irmão militar, compôs uma obra conceitual que adota o ponto de vista inconforma­do de um veterano da Guerra do Vietnã. Não à toa, os versos desse álbum embalam boa parte dos 156 minutos de duração do filme “Destacamen­to Blood”, a visão do cineasta Spike Lee sobre como avidados homens negros foi afetada por aquele conflito bélico, maior divisor cultural da história americana na segunda metade do século 20.

O longa-metragem, que foi selecionad­o para estrear no Festival de Cannes, suspenso pela pandemia, acaba de chegar à grade da Netflix.

A tese do diretor está escancarad­a no trecho de um discurso de Malcolm X que abre o longa, comparando os negros obrigados a lutar na guerra àqueles que foram escravizad­os nos campos de algodão do sul, isto é, levados a servir a uma causa que não a própria.

Os quatro protagonis­tas da trama são sobreviven­tes da política que tornou afro-americanos “bucha de canhão” no sudeste asiático —um terço dos combatente­s no Vietnã era composto por soldados negros, embora formassem não mais do que 11% da população dos Estados Unidos.

Nos dias atuais, o quarteto retorna a Ho Chi Minh, outrora Saigon, disposto a encontrar uma arca cheia de ouro que esconderam durante a guerra e a achar os restos mortais de Stormin’ Norman, papel de Chadwick Boseman, de “Pantera Negra”, o líder do destacamen­to de que fizeram parte e uma espécie de mentor politizado dos quatro —“o nosso Malcolm e o nosso Martin”, como descreve um deles.

Quase 50 anos depois dos combates, cada um carrega as próprias cicatrizes, que vão da pobreza ao vício em opioides. Nenhumdele­sencarname­lhor essas feridas do que o traumatiza­do Paul, vivido por Delroy Lindo, um republican­o pró-Donald Trump que vive às turras com o seu filho, o professor de estudos afro-americanos David, papel de Jonathan Majors.

A derrocada da sanidade de Paul, embrenhado no mato com seu boné vermelho “Make America Great Again”, é o ponto alto da história.

Estar de volta ao Vietnã, é claro, reavivará o ressentime­nto de quem se deu conta que estava morrendo nas selvas da Indochina por um país que permitia que, em seu próprio território, Martin Luther King fosse assassinad­o e Angela Davis, encarcerad­a.

“Os soldados negros no Vietnã ouviram sobre o que seus irmãos e irmãs estavam fazendo nos Estados Unidos, onde cidades estavam em chamas”, disse o cineasta, em entrevista ao site americano Vulture. “A merda estava vindo à tona e eles não precisavam estar atirando em vietcongue­s. Mas essa dinâmica não era nova.”

De fato, é uma dinâmica que permeia toda a história americana, como Lee faz questão de frisar no filme, ao incluir uma menção a Crispus Attucks, estivador negro assassinad­o pelos ingleses em Boston e tido como a primeira vítima da revolução que levaria à independên­cia dos Estados Unidos. “Acreditamo­s na promessa deste país, mas ainda estamos esperando”, disse Lee.

Não fosse o tema do racismo, “Destacamen­to Blood” talvez não não passasse de uma obra anódina. Na primeira versão, escrita por Danny Bilson e Paul De Meo, os protagonis­tas da trama eram brancos, assim como os roteirista­s. Foi ao chegar aS pikeLee que o roteiro ganhou a sua principal camada.

Lançado enquanto protestos contra a brutalidad­e policial varrem as metrópoles americanas, o longa faz menções ao Black Lives Matter que soam mais orgânicas do que as referência­s aos atuais supremacis­tas brancos que o cineasta nova-iorquino inseriu em “Infiltrado no Klan”, seu filme anterior.

Nesse sentido, salvo um ou outro tropeço do roteiro que prejudicam o longa a partir de sua metade, “Destacamen­to Blood” parece levar o diretor de volta à boa forma dos tempos de “Faça a Coisa Certa”, o filme que em 1989 já antevia os atuais protestos ao encenar uma revolta contra a morte de outro sujeito negro asfixiado pela polícia, no caso, ado personagem Radio Raheem.

Na época de seu lançamento, boa parte da crítica cinematogr­áfica torceu o nariz para o filme e argumentou que a obra poderia incitar a violência. Três meses antes, quatro adolescent­es negros e um latino haviam sido injustamen­te acusados de estuprar e ferir uma mulher no Central Park, no escândalo judicial que inspiraria a minissérie “Olhos que Condenam”.

De lá para cá, Lee sedimentou sua carreira como o maior cronista das tensões raciais na América em filmes como “Febre da Selva” e, sobretudo, na cinebiogra­fia “Malcolm X” que, ele afirma, jamais seria feita por um grande estúdio nos dias de hoje.

Especialme­nte após “A Hora do Show”, de 2000, o diretor tem apurado o seu olhar crítico para a forma como Hollywood buscou embranquec­er a história dos Estados Unidos —não custa lembrar que um dos primeiros longas-metragens de todos os tempos, “O Nascimento de uma Nação”, dirigido por D. W. Griffith e lançado em 1915, é uma peça racista de ode à Ku Klux Klan.

Lee já havia desancado o clássico “...E o Vento Levou” em “Infiltrado no Klan”, por exemplo. Em “Destacamen­to

Blood”, ele mira as revanches sanguinole­ntas de “Rambo” e “Braddock”, tentativas de reabilitar o moral da superpotên­cia militar que havia levado uma surra dos vietcongue­s.

E, ao prestar duas homenagens a “Apocalypse Now”, o mais conhecido retrato cinematogr­áfico da Guerra do Vietnã, faz indagar por que há tão poucos registros desse conflito sob o ponto de vista daqueles que foram um terço do total de combatente­s.

Nesse sentido, Spike Lee é uma espécie de anti-Quentin Tarantino, seu superestim­ado desafeto. Enquanto o diretor de “Pulp Fiction” usa seus filmes para reconstrui­r os fatos sempre sob sua lente pueril e “americano cêntrica ”— que o diga o Hitler metralhado de “Bastardos Inglórios”—, seu colega nova-iorquino usa o cinema como um instrument­o para reabilitar­a história.

Não é por outro motivo que Spike Lee cutuca um herói americano como George Washington no filme. “Na escola nos ensinaram que ele era um homem que nunca mentia”, disse o diretor à Deutsche Welle. “Nunca nos ensinaram que ele tinha 123 escravos. Deixaram de fora. De propósito.”

Não foi uma surpresa ver que “Casa de Antiguidad­es” estava na seleção oficial do Festival de Cannes deste ano, impedido de acontecer por causa da pandemia de coronavíru­s. Divulgada na semana passada, alista confirmou o potencial do filme brasileiro de apare cerna Cr oi set te—m esmoque, agora, isso já não seja exatamente possível.

Quem dá caraàtrama­éo veterano Antonio Pitanga, no papel de um operário transferid­o parau ma cidadezinh­a de colonizaçã­oaustríaca do sul do Brasil. Imerso naquela comunidade de cabelos loiros e olhos claros, o personagem vai ficando deslocado, enquanto o racismo ecoa na fábrica onde trabalha.

Segundo o ator, não havia melhor momento para a divulgação da seleção de Cannes, tanto pelo contexto político do Brasil quanto pela crescente onda de insatisfaç­ão que tomou as ruas do mundo depois do assassinat­o de George Floyd nos Estados Unidos.

Às vésperas de completar 81 anos, neste sábado, Pitanga recebeu a notícia sobre “Casa de Antiguidad­es” como um presente de aniversári­o. “E olha que eu já fui Palma de Ouro”, brinca ele, em referência à sua participaç­ão em “O Pagador de Promessas”, que abocanhou a premiação máxima do Festival de Cannes em 1962.

O ator põe o novo filme no mesmo patamar de alguns de seus trabalhos mais marcantes, até mesmo por tratar de um assunto tão caro a ele, como o racismo. “Para mim, esse é um novo ‘Barravento’”, diz em alusão ao primeiro longa de Glauber Rocha. “É um filme tão humano, realista, atual. Parece até um discurso que eu faria na década de 1960, contra o racismo, a perseguiçã­o, a invisibili­dade. Mas estamos em 2020.”

Ele celebra as mudanças que tem observado, no entanto, principalm­ente nos últimos dias, com o movimento Black Lives Matter e seus protestos que têm engolido um mundo já febril por causa da Covid-19

Pitanga assistiu com consternaç­ão ao vídeo em que um policial americano branco sufoca GeorgeFloy­d.“Ess amor te, amaneira como ocorreu e a tragédia que representa, é uma revolução, ela tem que causar uma mudança —e eu quero acreditar que vai.” Por trás da indignação que sucedeu o assassinat­o, Pitanga sublinha que estão séculos de invisibili­zação da população negra.

“Eu sempre digo que a conta não fecha. Na minha época eram poucos os negros em evidência na cultura, e hoje o percentual ainda está aquém. Então eu acho que ter o Lázaro [Ramos], a Camila [Pitanga, sua filha], a Taís [Araújo], a Juliana [Alves], o Fabrício [Boliveira] é muito significat­ivo, porque cada um acaba valendo por mil. Em ‘Barravento’ eu já falava isso, cada negro que se liberta liberta um milhão.”

Pitanga é como um amálgama de cultura e política. Na tarde em que conversou com o repórter, se mostrava ansioso coma votação da Lei AldirBlanc, quedes tina R $3 bilhões para socorrer acultura em meio à Covid-19, aprovada pelo Senado naquele mesmo dia e de coautoria da deputada Benedita da Silva, sua mulher.

Mas o avanço dop roje toé um breve respiro num contexto político que o assusta .“Nós estamos no caminho da ditadura. Eu já vivi isso, nós já vimos esse filme. As coisas caminham para isso”, afirma. “Se você põe um negro na Fundação Palmares e ele é pior do que um capataz, tudo pode acontecer”, diz sobreano meação de Sérgio Camargo para a instituiçã­o .“E essa nomeação vem deump residente homofóbico, racista .”

Mas o ator tem esperança de que, com as gerações mais jovens, que “emanam coisas positivas”, o cenário que se desenha no Brasil vai tomar outro rumo, assim como as injustiças dirigidas a grupos considerad­os minorias. Seu próximo trabalho, acredita, será mais um passo em direção a isso. Assim que as restrições sociais forem afrouxadas, Pitanga pretende gravar “Malês”, filme sobre a revolta de escravos ocorrida no Brasil imperial, que ele dirige e estrela. No elenco, é acompanhad­o dos filhos, Camila e Rocco Pitanga.

“Precisa ser um épico, porque um levante como esse precisa ser filmado com toda aforça e a verdade dos acontecime­ntos. Pouco se conhece dessa história, que dá um grito de liberdade para o povo negro em 1835. E agora voltamos a ele, em 2020.”

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Divulgação Detalhe do pôster de ‘Destacamen­to Blood’
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Divulgação Imagem do pôster de ‘Destacamen­to Blood’, de Spike Lee
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Divulgação Cena de ‘Pitanga’, documentár­io dirigido por Beto Brant e Camila Pitanga, filha do ator

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