Folha de S.Paulo

Deixem o vento levar

Emissora retirou filme de sua plataforma após protestos de quem o encara como uma obra racista

- Marina Lourenço

Ativistas negros veem censura na decisão da HBO de retirar de sua plataforma de streaming o clássico “...E o Vento Levou”, após críticas de que a obra de 1939 reforçava estereótip­os do racismo nos EUA.

“Este é um dos momentos mais felizes de minha vida”, disse Hattie McDaniel ao subir ao palco da 12ª edição do Oscar, em 1940, para receber o prêmio de atriz coadjuvant­e. “Espero sinceramen­te ser sempre motivo de orgulho para a minha raça e para a indústria cinematogr­áfica.”

Diferentem­ente de todos os outros premiados daquela noite, McDaniel era uma pessoa negra e se tornou, naquele momento, a primeira atriz com sua cor de pele a receber uma estatueta da cerimônia.

O prêmio foi entregue por “...E o Vento Levou”, de Victor Fleming, que narra uma história de romance, marcada por encontros e desencontr­os, da personagem Scarlett O’Hara, papel de Vivien Leigh, jovem branca filha de um latifundiá­rio, no sul dos Estados Unidos durante a Guerra de Secessão.

McDaniel, filha de ex-escravos, interpreta Mammy, uma empregada da família O’Hara, sarcástica, engraçada e amorosa com seus patrões. Os outros atores negros do elenco também interpreta­m criados.

Sempre doces, obedientes e ingênuos, os negros de “...E o Vento Levou”, no entanto, são uma representa­ção deturpada da realidade existente no sul dos Estados Unidos na época representa­da, marcada pelos horrores da escravidão.

Militantes negros criticaram o filme quando lançado, em 1939, mas isso não impediu que a obra levasse oito prêmios no Oscar, incluindo o de melhor filme, e se tornasse clássica. Oito décadas após o lançamento, “...E o Vento

Levou” está envolvido em nova polêmica, desta vez, intensific­ada pelas redes sociais.

Em meio aos recentes protestos contra o racismo nos Estados Unidos —motivados pelo assassinat­o de George Floyd— John Ridley, roteirista de “12 Anos de Escravidão”, escreveu um artigo no jornal Los Angeles Times dizendo que o filme de Fleming “perpetua alguns dos estereótip­os mais dolorosos das pessoas de cor” e, por isso, deveria ser urgentemen­te retirado da plataforma de streaming recém-lançada HBO Max.

No dia seguinte, a empresa anunciou que retirou a obra e pretende devolver o longa ao catálogo no futuro, acompanhad­o de material de contextual­ização histórica que promova a discussão, como Ridley já havia sugerido.

A decisão da HBO teve repercussã­o nas redes sociais, que incluiu desde acusações de censura até o destaque que “...E o Vento Levou” conquistou ocupando o topo das vendas de best-sellers da Amazon.

O professor e cineasta Dodô Azevedo, que mantém um blog neste jornal, diz que a atitude da HBO não só é um tipo de censura à arte como uma propaganda “de sua parte tóxica”.

“Esse filme é e será lembrado como a prova de que melhoramos como seres humanos. Faz parte da nossa história e não merece censura”, diz ele. “Muitos filmes foram usados para propaganda nazista e é muito importante analisar para que isso não se repita.”

A retirada temporária do filme da plataforma é também criticada por Thiago Amparo, especialis­ta em direito e colunista deste jornal. “A censura pode ocorrer por razões moralmente aceitáveis ou não, mas o ato é o mesmo. E isso pode até ter efeito contrário e incentivar um interesse pela obra desacompan­hado de qualquer contextual­ização.”

O livro “Racismo Recreativo”, de Adilson Moreira, publicado no ano passado, sugere como alternativ­a que o consumo de produtos artísticos que contenham discursos e ideias opressoras seja feito sempre alinhado a um material capaz de expor as problemáti­cas em questão, tal como a ação prometida pela HBO, mas ainda sem data definida.

“O racismo continua presente na nossa sociedade devido à ausência de debate sobre ele”, diz Moreira. “Esse pode ser um ponto de partida para entendermo­s o presente e não reproduzir­mos certas narrativas. Esse é um bom exemplo de letramento racial.”

No caso do Brasil, a escritora Djamila Ribeiro, também colunista do jornal, considera que livros como “Sítio do Picapau Amarelo”, de Monteiro Lobato, que, segundo ela, não só disseminam discursos racistas, como os estimulam, não devem constar na grade educaciona­l infantil. “Se adultos quiserem ter nas suas estantes, tudo bem. Mas uma criança está em processo de formação.”

Quando questionad­a sobre a decisão da HBO, Ribeiro diz que não considera o caso como censura. “É uma plataforma retirando um filme que romantiza a violência racial. Censura seria se não fosse exibido nunca mais em nenhum lugar.”

Diante de tantas discussões e protestos contra o racismo, é preciso ter em mente a necessidad­e de promover mudanças significat­ivas, e não sentir só “mea culpa”. É o que diz Amparo, que interpreta a decisão da HBO Max como uma “censura temporária”, ao analisar os acontecime­ntos envolvendo a luta antirracis­ta.

Ele diz ainda que a empresa deveria aproveitar a preocupaçã­o para investir em mais produções culturais negras.

 ?? Divulgação ?? Os atores Delroy Lindo e Jonathan Majors em cena de ‘Destacamen­to Blood’, novo filme de Spike Lee, que estreia hoje na Netflix
Divulgação Os atores Delroy Lindo e Jonathan Majors em cena de ‘Destacamen­to Blood’, novo filme de Spike Lee, que estreia hoje na Netflix

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