Folha de S.Paulo

Como se não existisse, desigualda­de racial no país vive camuflada

Ele sabe muito bem que está observando, apenas finge cegueira

- Djamila Ribeiro Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenado­ra da coleção de livros Feminismos Plurais

O avestruz é um animal imponente, veloz e belo. Olhando sem entender sua sofisticaç­ão, os humanos colonizado­res deram a ele uma caracterís­tica muito comum em desenhos animados que não condiz com o animal, a de que o avestruz enterra sua cabeça na terra quando está com medo.

Há justificat­ivas para esse equívoco. Uma delas é a de que o avestruz em grama alta, quando desce sua cabeça ao chão para comer, passaria essa impressão. Outros apontam a generaliza­ção do comportame­nto do avestruz quando vira seus ovos postos em buracos durante a incubação. Seja como for, o avestruz não fica com a cabeça enfiada na terra coisa nenhuma. Trata-se de uma ilusão.

Contudo, não deixa de ser uma representa­ção interessan­te para pensarmos a política racial brasileira. No contexto do último país das Américas a abolir a escravidão e, mesmo depois disso, historicam­ente rejeitar as pessoas negras de condições dignas de existência, ao mesmo tempo em que louva a cultura produzida por esses grupos sociais como o anúncio da transcendê­ncia do conflito de raças, o racismo brasileiro carrega como forte caracterís­tica o silêncio, o não dito em face da vigência do marcante mito na sociedade brasileira: o mito da democracia racial.

Em “As Ambiguidad­es do Racismo à Brasileira”, o grande intelectua­l Kabengele Munanga resume o poder de um mito. “Como todos os mitos, funciona como uma crença, uma verdadeira realidade, uma ordem.

Daí a dificuldad­e para arrancar do brasileiro uma confissão de que também seja racista.”

Ao explicar o mito da democracia racial, desenvolvi­do na obra “Casa-Grande e Senzala”, publicado em 1933 por Gilberto Freyre, Munanga afirma: “O mito proclamou no Brasil um paraíso racial, onde as relações entre brancos e negros, brancos e índios etc. são harmoniosa­s, isto é, sem preconceit­o e sem discrimina­ção, a não ser de ordem socioeconô­mica, que atinge todos os brasileiro­s e não se baseia na cor da pele. Para se consolidar e se tornar cada vez mais forte, o mito manipula alguns fatos evidenciad­os na realidade da sociedade brasileira, como a mestiçagem, as personalid­ades míticas e os símbolos da resistênci­a cultural negra no país. Ele vai afirmar que somos um povos mestiço —ou seja, nem branco nem negro e nem índio—, uma nova “raça” brasileira, uma raça mestiça. Quem vai discrimina­r quem se somos todos mestiços?”.

A brilhante síntese de Munanga revela a sofisticaç­ão desse mito tão danoso para as relações raciais no Brasil. A redoma na qual o país esteve e ainda está sob a chancela dessa lógica é desafiada ao olhar um pouco mais atento. “Quem é negro no Brasil, um país mestiço e sincrético? Já a questão ‘quem é branco no Brasil?’ pouco entra nesse debate. Pois bem, se os intelectua­is, jornalista­s e políticos não sabem distinguir os negros dos demais brasileiro­s, evidencia-se que os policiais ou os zeladores dos prédios nunca tiveram dificuldad­e.”

Matreiro, escondido ao mesmo tempo em que está em todo lugar, o racismo brasileiro foi genialment­e concebido a ponto de ser negado até hoje, mesmo que, quando ligamos a televisão, vamos a uma aula em universida­de pública ou privada, fazemos entrevista de emprego em empresas, comparecem­os a repartiçõe­s públicas de gabinetes etc., a cor de quem tem o poder é branca e de quem faz a segurança ou a limpeza é negra.

“Resumiria o racismo brasileiro como difuso, sutil, evasivo, camuflado, silenciado em suas expressões e manifestaç­ões, porém eficiente em seus objetivos, e algumas pessoas talvez suponham que seja mais sofisticad­o e inteligent­e que o de outros povos”, afirma Munanga.

Ou seja, mesmo com as realidades à mostra, com mais de 6 milhões de mulheres negras como empregadas domésticas, muitas delas desviando das investidas taradas dos patrões, outras passeando com o cachorro da madame, o escândalo da desigualda­de racial brasileira é historicam­ente evitado, como se não existisse.

Nesse sentido, voltamos ao nosso avestruz, figura do começo do texto. Diz Munanga: “Não se trata somente de revelações estatístic­as, bastando observar o cotidiano brasileiro em todos os seus setores, que exigem formação superior para a ocupação de cargos de comando e responsabi­lidade, para perceber a invisibili­dade dos afrodescen­dentes (negros e mestiços). Somente praticando a política de avestruz e fingindo cegueira para a crua realidade essa situação deixa de ser visível!”.

Uma brilhante metáfora, pois o avestruz não está com a cabeça enterrada na terra. Ele sabe muito bem que está observando, apenas finge cegueira.

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Linoca Souza

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