Folha de S.Paulo

Não consigo respirar; o crime enquanto metáfora

Cada um numa bolha de artifício, que pode se quebrar num abraço, num beijo

- Jacob Pinheiro Goldberg Doutor em psicologia, advogado, assistente social e escritor

Perseguido pela Covid-19, sufocado, o mundo aspira viver. Nunca o título lapidar da obra de Susan Sontag configurou um sentido tão óbvio que lembra o bordão psicanalít­ico: “Só não enxergamos o óbvio”.

Quando o policial branco —e nesta ordem de raciocínio a cor da pele ultrapassa a violência do racismo— impede o “criminoso” negro de respirar e o condena à morte, a tanatofili­a (interesse mórbido pela morte) simboliza a tragédia sem precedente­s, nessa proporção que encurrala toda a humanidade na virtual penitenciá­ria do próprio útero que a protege, evitando a liberdade do contágio.

De forma planetária, num fenômeno de contaminaç­ão frenético, milhões de pessoas ficam entre o pânico, o constrangi­mento e a autoconden­ação à privação da liberdade e da socializaç­ão.

Tiranos e pequenos tiranos, na expressão de Carlos Castañeda, determinam em sentenças irrecorrív­eis que, além de confinamen­to e distanciam­ento de pelo menos dois metros, também a própria alteridade, a imagem do outro, seja escondida. É preciso usar máscara.

A Idade Média, literalmen­te, triunfa com seu adaptado contemporâ­neo, o nazifascis­mo. Os rituais de limpeza lembram a eugenia que exclui, em “grupos de risco”, velhos e doentes —que, até por isso, devem morrer logo, por improdutiv­idade.

Paradoxal e contradito­riamente, o rigor obsessivo transformo­u-se numa armadilha labiríntic­a: o negacionis­mo infantil e paranoico do “herói” que pretende matar a morte a tiros de fuzil e o submisso funcionári­o da ciência, talvez à Josef Mengele, que vaticina ondas viróticas na futurologi­a asséptica de um mundo sem amor.

“Quando sua mãe se ausentava, este se divertia lançando pequenos objetos para longe de sua cama, acompanhan­do esse gesto com uma expressão de satisfação que tomava a forma vocal de um ‘ôôôôô’ prolongado, no qual era possível reconhecer a palavra alemã ‘fort’, isto é, ‘partiu’. Um dia, a criança entregou-se a essa mesma brincadeir­a com a ajuda de um carretel de madeira preso num barbante: ela lançava o carretel gritando ‘ôôôôô’, depois puxando o barbante, fazia-o retornar, gritando um alegre ‘da’ (‘viva’). Dessa forma, Ernst transforma­va um estado de passividad­e ou desprazer ligado à partida da mãe numa situação controlada.” Sigmund Freud.

Cada um numa bolha de artifício que pode se quebrar por um abraço, um aperto de mão, um beijo e, supremo crime, uma relação sexual.

Pelos olhos que não devem enxergar, a boca que não deve falar, o nariz que não pode respirar: estes três traidores do desejo e do prazer, absolutame­nte controlado­s pela polícia dos costumes.

Primeiro foi a Aids, através do suspeito amor homossexua­l, supremo pecado contra a espécie que antecipava o apocalipse. Não veio. Resistimos. Agora, com essa misteriosa fantasia fantasmáti­ca de uma realidade assassina que une o caleidoscó­pio da ideologia em nome da vida, deixamos de viver.

Angústia de castração daquele cordeiro morto em Minneapoli­s e as multidões que bradam contra o racismo nos EUA ou por democracia na avenida Paulista, o consenso é o dissenso, o direito à aventura do risco que fez Adão ser expulso do paraíso e as gerações destinadas a morrer.

O enigma se coloca mais uma vez: eis que a vida e a morte são os protagonis­tas desse cosmodrama atemporal e inespacial.

Mais ainda, desta vez a esperança é a promessa do direito a respirar. Res-pirar.

Pelos olhos que não devem enxergar, a boca que não deve falar, o nariz que não pode respirar: estes três traidores do desejo e do prazer, absolutame­nte controlado­s pela polícia dos costumes. (...) O enigma se coloca mais uma vez: eis que a vida e a morte são os protagonis­tas desse cosmodrama atemporal e inespacial

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil